Demasiado mau

flexibilidadeO projecto de flexibilização curricular do secretário de Estado João Costa consegue superar as piores expectativas de quem à partida, como é o meu caso, estava apenas moderadamente céptico em relação ao que aí viria.

Confirma-se que o PS ao volante, na Educação, é perigo constante – a sinistra ministra que infernizou, nos tempos de Sócrates, a vida dos professores, não foi apenas um epifenómeno ou um erro de casting: representa bem, tal como este novo despacho também o faz, uma visão do sistema educativo como uma construção de iluminados, uma fábrica de omeletes sem ovos e um pasto para demagogos e engenheiros sociais que irresponsavelmente decidem da vida e do futuro de centenas de milhares de crianças e de jovens que frequentam as escolas portuguesas. E onde a opinião dos professores que realmente conhecem os seus alunos e sabem do que necessitam, uma vez mais, não conta para nada.

O documento, que o Paulo Guinote já vaticina que ficará para os anais da Educação portuguesa, marca o regresso daquele eduquês retumbante, oco e palavroso, que diz pouco em muitas palavras e ressoa o auto-contentamento dos eduqueses pedantes e contentes consigo próprios. São trinta e seis páginas difíceis de tragar e revoltantes, até, na tábua rasa que fazem do trabalho esforçado e competente dos professores e do muito que a escola agora dita do século XIX fez, já em pleno século XXI, pelos alunos portugueses, levando-os galgar posições nos rankings internacionais, para o substituir por vacuidades sem substância.

Logo no preâmbulo, invoca-se “um longo processo de auscultação” para apontar apenas dois intervenientes influentes neste projecto: um fórum da OCDE e uma reunião do ministro com representantes de alunos de todo o país. Foi nestes dois momentos que disseram ao ministro que era necessário mudar, e é nisto que se baseiam para impor aos professores, com ar de quem lhes está a dar um grande presente, a autonomia para gerirem, nas escolas, o “desenvolvimento curricular”.

Sim, porque em nenhum momento passa pela cabeça dos nossos governantes vir falar com os professores e perguntar de que é que precisamos para fazer melhor o nosso trabalho. Duvido que algum colega pusesse no topo das prioridades esta coisa absurda que é andar a desfazer e a reconstruir o currículo em mais de 800 escolas e agrupamentos do país, numa constante reinvenção da roda. Como se os professores não tivessem coisas mais úteis para fazer, trabalhando com os seus alunos, em vez de trabalhar para os papéis.

Que papelada é coisa que não falta na flexibilização curricular. As escolas vão criar novas matrizes curriculares, planos curriculares para cada turma e mais uma série de novos planos, projectos e outros documentos para regular as novas ofertas educativas e “unidades de formação” e gerir a profusão de interdisciplinaridades e transversalidades educativas que irão garantir que, em vez da escola chata do passado, os alunos só irão fazer, daqui para a frente, “aprendizagens significativas”.

Pondo de parte a cortina de fumo da retórica eduquesa e olhando para as matrizes curriculares que servirão de base ao novo modelo e que, mais do que o palavreado, revelam as intenções subjacentes, a realidade torna-se mais clara. Algumas notas sobre um modelo organizacional que, da forma como está, espero que não chegue nunca a generalizar-se nas escolas portuguesas:

O lobby da Educação Física ganha em toda a linha.
Quais “expressões físico-motoras”? Educação Física logo no 1º ano de escolaridade é que é! Cinco horas semanais, em conjunto com a Expressão Artística. Nos restantes ciclos a disciplina ganha um reforço de horas, que chegam aos 200 minutos semanais no 9º ano. Não se chega a perceber porquê e para quê.

Cidadania por todo o lado.
Cidadania e Desenvolvimento passa a estar integrada nos currículos e será uma nova disciplina no 2º e 3º ciclo, ao que parece semestral. Claro que num currículo já demasiado fragmentado era escusado andarem a inventar novas disciplinas, ainda para mais quando se percebe que esta acabará a roubar horas à História e à Geografia, duas eternas sacrificadas das reformas e contra-reformas das últimas décadas. E o que é que se ensina em “Desenvolvimento”? Alguém explique, aos cientistas da educação que inventaram isto, que o que faria falta aos nossos alunos era aprenderem, ali pelo final do 3º ciclo, alguma coisa de Economia. Conhecimento científico sólido e estruturado em vez de banha da cobra sobre empreendedorismos avulsos e banalidades da vulgata neoliberal. Também convinha olharem com um pouquinho mais de atenção para as matrizes dos CEF e verificarem que a disciplina sempre lá existiu, com a designação de Cidadania e Mundo Actual. Não precisavam de a colocar duas vezes na matriz, uma na vertical e outra na horizontal. Burros!

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Tecnologia, só a fazer festinhas nos ecrãs!
Se no 2º ciclo ainda aparece um arremedo de Educação Tecnológica, no 3º ciclo a única tecnologia que se acha necessário que os alunos dominem é a utilização das TIC. É absurdo, numa pseudo-reforma educativa que tanto ênfase parece querer dar ao trabalho de projecto, não se valorizar uma disciplina que já foi importante nas escolas portuguesas e que era onde os alunos verdadeiramente aprendiam a trabalhar e a criar com base num projecto. Não se perceber a importância de levar os miúdos a tirar as mãos e os olhos dos ecrãs e a manipular materiais e ferramentas reais construindo coisas úteis e bonitas com as suas próprias mãos.

Artes, apenas visuais. E nada mais.
Outra área onde soma e segue a tendência para o empobrecimento curricular é a das artes, que se resumem à Educação Visual, desaparecendo as disciplinas de Educação Artística do desenho curricular que é proposto às escolas. Não haverá lugar, na escola do século XXI, para a Música, o Teatro, a Dança?…

20 thoughts on “Demasiado mau

  1. “Confirma-se que o PS ao volante, na Educação, é perigo constante ”

    São todos 1 perigo constante. Ninguém, de 1 lado ao outro dos partidos representados na AR, faz a mínima ideia de como funciona 1 escola ou o que querem da escola. No fundo, querem tudo e atafulham-na de burocracia atrás de burocracia e entropias a granel.. Os experts do costume também não percebem; os inúmeros mestrandos e doutorados e pós-doutorados em Ciências da Educação também não, estudando todos pela mesma sebenta e concluindo, invariavelmente, o mesmo.
    O jornalismo sobre o tópico é paupérrimo e não consegue desenvencilhar-se neste novelo, cuja ponta anda por aí perdida, ficando-se pela espuma da coisa.

    É mais fácil entrar em Tancos e roubar armamento do que entender a escola e este Despacho.

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    • Não tenho muito jeito para o “who is who”, mas parece-me que a segunda linha de decisores está recheada de proeminentes eduqueses do tempo do Sócrates e de outros governos, do PSD inclusive.

      Portanto a juntar a essa ignorância convencida há também a teimosia e a incapacidade de reconhecer os erros em que eles próprios estiveram envolvidos.

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  2. Só mais um apontamento (de alguém muito cansada com tudo isto): se é verdade que a escola se democratizou ao longo destes anos, também verifico que, à saída, o mesmo não acontece em termos proporcionais.

    Exames a rodos, como política educativa por excelência, mascara o problema; flexibilizações e “perfis do séc XXI” agora na berra também não.

    Quer num quer noutro caso, as elites continuarão com os mesmos apelidos. Uns poucos, poderão ultrapassar o portão das oportunidades. Mas serão poucos, que o sistema tem de se manter…..

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  3. Demasiado mau, de facto.
    O Crato já tinha atrapalhado muito com a “autonomia” dos minutos, das matrizes, mas nada ao pé disto.

    Como não estou a caminhar para novo, não me deixo levar por euforias juvenis de mudanças de Governo e equipas novas. Já sei do que a casa gasta, sei que a inteligência não abunda e o bom senso ainda menos. O António Duarte acreditou.

    Foi ingénuo. Mesmo dando de barato que os exames de 4.º e 6.º pudessem terminar, o modo como terminaram, o enxamear as escolas de provas de aferição (novamente para o ano em TODAS as disciplinas do 2.º ano), o discurso que se construiu a partir desse momento foram erros clamorosos e revelaram uma irresponsabilidade que na altura pouca gente viu e ninguém denunciou.

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  4. Só não percebi o que é o lobby da educação fisica. Será o lobby do combate ao sedentarismo e da obesidade infantil? Será o lobby de quem quer que em Portugal as crianças e jovens dediquem mais tempo à actividade física e desportiva, ao nível do que se faz nos países mais desenvolvidos?

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  5. Sobre o lobby de E.F. lembro “Portugal é o 5 país da OCDE com maior taxa de OBESIDADE em crianças até 15 anos.”, mas é inegável que houve um reforço. A questão que se coloca é se era necessário?

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  6. […] Escrevi ontem sobre o projecto de flexibilização curricular num tom um pouco menos cordato do que me é habitual. Habitualmente tento ver os assuntos que me motivam a escrever de mais do que uma perspectiva, e evidenciar os vários lados de uma mesma questão. Mas se desta vez desanquei, de alto a baixo, numa medida do governo, não é porque tenha aderido à oposição anti-geringonça ou veja no simpático e esforçado Tiago Brandão Rodrigues a reencarnação do diabo. É mesmo porque, olhando seja de que lado for, não consigo encontrar pontos positivos a favor do novo_projecto com que ameaçam pôr de pantanas as escolas portuguesas. […]

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  7. Nada contra a Educação Física e a sua importância para o combate à obesidade e para os hábitos de vida saudável.

    O que acho é que são problemas cuja resolução vai muito para além da atribuição de mais umas horas da disciplina. Até porque essas horas são retiradas a outras disciplinas às quais também vão fazer falta.

    Puxando um pouco a brasa à minha sardinha: os 200 minutos de EF no 9º ano surgem com base em quê? Porque é que nesse ano em concreto precisam de mais tempo? Em contrapartida, em História e Geografia é nesse ano que se desenvolvem a maioria dos conhecimentos e competências relacionados com a cidadania e os problemas do desenvolvimento que agora o ME quer valorizar. Mas reduzem, na matriz, o tempo para estas disciplinas…

    Voltando à EF, é evidente que há opções que é legítimo um governo tomar, agora convinha que fossem discutidas publicamente, em vez de decididas nos bastidores por influência de gente bem posicionada. E que todas as opções fossem colocadas em cima da mesa. Por exemplo: porque não apostar mais no Desporto Escolar, alargando a oferta e melhorando as condições, muitas vezes na base da carolice, em que se trabalha nesta área? E o investimento em instalações e equipamentos desportivos nas muitas escolas que não têm um espaço condigno para a prática da disciplina, porque continua a ser uma urgência eternamente adiada?

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    • Não lhe parece mais conveniente apostar na disciplina que é para todos e depois no Desporto Escolar que são apenas para alguns? Lobby da Educação Física? Os 200 minutos deviam ser em todos os anos letivos. Somos um dos países com menor carga horária na disciplina a nível Europeu. É preciso não ter um pingo de vergonha para falar de lobby numa disciplina q se fartou de ser maltratada ao longo dos últimos anos.

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      • “Somos um dos países com menor carga horária na disciplina a nível Europeu”

        O argumento não colhe, porque não é verdadeiro. Já somos dos que têm mais horas de EF: http://eacea.ec.europa.eu/education/eurydice/documents/thematic_reports/150EN.pdf

        Todos os professores tendem a achar que a sua disciplina é a mais importante de todas, e isso é compreensível. Agora não é todos os dias que se tenta fazer do aumento das horas da sua disciplina uma causa nacional, o que acho manifestamente exagerado.

        E continuo a dizer: pavilhões desportivos nas escolas que ainda os não têm, instalações e equipamentos adequados para a actividade física nas escolas do 1º ciclo, mais desporto escolar para os que gostam e querem ir mais além, clubes desportivos locais mais amigos da prática recreativa das modalidades e menos focados na competição, fomentar idas para a escola a pé ou de bicicleta, em vez do autocarro à porta ou do carrinho do papá – tanta coisa que haveria a fazer em prol da actividade física e da vida saudável em vez de colocar como prioridade tirar horas às outras disciplinas…

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    • A questão do 9º ano não percebo porquê… sinceramente não entendo. Porque não no 7º ou 8º ano, não sei. Sobre a discussão pública ela foi feita, foram ouvidas as diferentes associações, diferentes professores e se há coisa que não se pode acusar este secretário de estado é de não ouvir as pessoas. O homem não para quieto…
      Mas a temática da E.F vai sempre terminar na sua importância e sinceramente estou farto de escrever sobre o assunto.

      Um abraço.

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  8. Eu que gosto deste blogue, desta vez vou discordar de praticamente tudo e vai ser ponto por ponto. Como estou aposentada, faço-o da forma mais distante que é possível.
    1. Tenho apreço por este ministro e pela equipa dele. Muito porque reconheço capacidade de ouvir e vejo, pelo que vou sabendo, que têm grande proximidade dos professores e das escolas. Não acho justo que se diga que o ministro está a decidir sozinho.
    2. Pelo que leio do despacho, a sua virtude é que não há nada imposto. O Crato impôs horas e mais horas daquilo e do outro, ou seja, de português e matemática, sem consultar ninguém. Aqui dão liberdade para não mexer nas matrizes ou para mexer. Porque é que havemos de ficar presos a uma matriz fechada?
    Por isso, também não me parece que esteja a ser imposto nada.
    3. Não sei o que é o lobby da educação física. Posso não perceber, mas acho bem que numa sociedade de jovens sedentários agarrados a telemóveis, haja mais atividade física.
    4. Também gostava de ver outras artes, mas acho que o despacho permite que haja outras disciplinas e desenvolvimento de métodos com artes.
    5. Tenho apenas pena que a cidadania não seja uma disciplina no secundario, mas o lobby da matemática deve falar mais alto.
    Curiosamente, o que o colega aponta na sua outra publicação como coisa que se poderia fazer é mesmo o que o despacho permite que se faça.
    Acho que está a ser dada uma enorme oportunidade de trabalho às escolas.

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    • Objecções pertinentes e bem fundamentadas, sem dúvida.

      Espero não ofender, que não é de todo minha intenção: estarei apenas a ser sincero se lhe disser que, caso não estivesse no activo, provavelmente também veria com olhos mais benevolentes estas reformas. Mas como sei que isto me vai cair em cima, mais dia menos dia, estou apreensivo. E não gosto.

      A questão da liberdade dos professores para fazer isto e aquilo é, com o actual modelo de gestão, uma falácia: em muitos lados, provavelmente a maioria, vai fazer-se o que o director manda.

      O que me parece é que instituir uma semana de projecto nas escolas portuguesas, como se faz na Alemanha e noutros países, não precisava de tantas voltas nem deste modelo maximalista que parte de uma profunda ignorância do que é na verdade o trabalho do professor. E de quem são hoje os professores portugueses, a maioria com 50 anos ou mais ainda, desgastados, descrentes dos políticos e das modas pedagógicas. Não têm noção da quantidade de trabalho que implica desconstruir o currículo e reconstrui-lo na base do trabalho de projecto. E fazê-lo bem feito.

      Dizer que este modelo não impõe e que deixa margem de decisão às escolas é no fundo reconhecer que estas poderão ainda fazer algumas coisas boas pelos seus alunos APESAR deste projecto, não por causa dele.

      Quanto à Cidadania, não estou de acordo, e repare que eu próprio também sou professor desta disciplina, que existe nos CEFs desde a sua criação: tem razão de ser nestes cursos, mas no ensino regular não acho que faça sentido uma disciplina de Cidadania. Acho que os alunos precisam é de tempo suficiente, na História, na Geografia, na Filosofia e noutras disciplinas, como a Economia, que continua ausente do currículo geral, para aprenderem aquilo que fará deles bons cidadãos.

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      • Concordo inteiramente consigo e sublinho: se dessem o devido valor às disciplinas de História, Geografia, Filosofia e Português/Literatura não era preciso este remendo da “Cidadania”.
        Como professora de Português, faço isso desde a primeira hora, todos os dias, desde há 40 anos. A Literatura, essa “utilidade do inútil”, tem lá tudo.

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    • 1 – Eu, estou no activo e ainda não lhe senti proximidade (de qualquer tipo) nenhuma. Acredita mesmo que quem decide é o ministro? -Esses entram e saem, os outros vão permanecendo: ora aqui, ora acolá, ora “acoli” …
      2- Não gosto nada da ideia da coisa ficar ao gosto do freguês… é que os “fregueses”, neste país, têm pouca capacidade de pensar e agir com vista ao Bem público – e, nisto, as escolas, não são diferentes do resto… com a agravante do “resto” estar cada vez mais dentro das escolas…
      3- Iremos ter uma geração menos agarrada aos telemóveis, menos sedentária, menos obesa, … uma geração, portanto, mais “ginasticada” (acabei de cometer, provavelmente, um crime “lesa pátria”) – pelo menos fisicamente que intelectual e cientificamente é outra história…
      4- artes e culturas, culturas e artes, …, obrigatório, noutras modalidades, com outras ofertas…finalmente vão os jovens poder desenvolver visões de beleza, estética e património como nunca até hoje…
      5- permita-me discordar, também, da cidadania como uma disciplina… vê-mo-la diariamente na boca de todos mas quanto ao seu exercício e ao seu exemplo…

      Quanto à oportunidade de trabalho que está a ser dada às escolas…, deve ser brincadeira mas desde logo eu, “cázinho” no activo (e não duvido que muitos outros como eu) estou farta de excesso de trabalho, em vão, inútil, “da treta” e a gozar com as escolas, com os professores e com os alunos!

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  9. Mais educação física por si só não vejo um grande problema. Esta disciplina pode ser usado com uma variedade de fins, muito mais do que um mero utensílio para o combate à obesidade (aquilo que parece ser o argumento principal).

    http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1469029205001020 – estudos como este mostram como a educação física bem pensada pode contribuir para o desenvolvimento de capacidades metacognitivas. Aquelas que são essenciais desenvolver para lutar contra as dificuldades de aprendizagem.

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