Escola à João Costa

Eis o prato do dia servido diariamente numa escola pública perto de si. Menu aclamado internacionalmente, ainda que indigesto para estômagos mais sensíveis.

Transcrevo, com a devida vénia, a receita que tem vindo a ser aplicada com sucesso, desde o tempo de Brandão Rodrigues à frente do tasco educativo, mas já com João Costa como incontestado chef dos cozinhados curriculares.

Ingredientes:

1 bengala;

1000 litros de mel (abelha MAIA);

500 gramas de Aprendizagens Essenciais;

30 dúzias de 54;

Uma pitada de professores (opcional);

1 mesa digitalizadora;

Coronas a gosto;

E@D e PADDE qb.

Preparação:

1) Parta as 30 dúzias de 54 e separe as Medidas Universais das Seletivas. De seguida, bata as Universais em castelo de modo a ficarem bem firmes. Reserve as Seletivas numa taça e leve ao frigorífico.

2) Numa sala de aula, adicione um professor a seu gosto, 50 gramas de Aprendizagens Essenciais, meia tonelada de domínios e 100 kg de mel abelha MAIA. Misture tudo muito bem e polvilhe com E@D e PADDE a gosto.

3) Repita o passo anterior por todas as salas de aula da escola até se esgotarem os ingredientes. Se faltar algum professor, não desespere, o resultado final será o mesmo.

4) Depois de preenchidas todas as salas de aula, despeje tudo na escola e misture muito bem. Poderá usar um “fouet” ou, se quiser um resultado mais rápido, uma batedeira elétrica.Quando estiver tudo muito bem misturado, junte as Universais em castelo e mexa bem até ficar cremoso.

5) Coloque a mistura nos licenciados não-educação e leve ao Ministério da Educação, a 220 graus, durante um ano.

6) Retire do Ministério da Educação os licenciados com a Escola à João Costa já cozida e coloque em cima da mesa digitalizadora. Decore com Coronas a gosto.

7) Por fim, dê três traulitadas com a bengala em cima da iguaria e faça de conta que nunca a viu.

Bon apetit! 👌👨‍🍳

© Ó Pressôre

Pensamento do dia

Se querem debate, ou um simulacro dele, sobre as pedagogias do século XXI, mas nem a experiência nem as opiniões dos professores no terreno lhes interessam, uma sugestão:

Coloquem os especialistas do PASEO e do currículo sem fronteiras, holístico, transversal e transdisciplinar, a discutir com os especialistas maiatos em avaliação, adeptos da normatividade, dos compartimentos estanques, das datadas dicotomias formativo/sumativo, avaliar/classificar.

Contradição insuperável? Talvez não. Havendo dinheiro fresco para desenvolver os projectos de uns e de outros, é certo que acabam por se entender.

Que se lixe a coerência e, pelo caminho, o mexilhão que, pelas escolas, acaba a levar com tudo em cima.

Portugal, um Rolls Royce na Educação?

Perante um título e uma manchete aparentemente tão elogiosos, tive natural curiosidade de ir ver o resto: o que teremos feito assim de tão bom, na Educação, para merecermos os elogios da representante da UNESCO?

A verdade é que, avançando na leitura, o entusiasmo esmorece: o automóvel de luxo só nos garante, afinal, a presença entre os primeiros 40 classificados no ranking dos sistemas educativos. E os elogios não vão propriamente para alunos e professores que, nas escolas, vão dando o seu melhor para que uns aprendam e outros ensinem. Quem parece estar de parabéns são os especialistas curriculares do ministério, que basicamente se têm dedicado a desconjuntar o currículo, transformando-o numa manta de retalhos incoerente, erigida em torno de vagas competências.

Tudo isto tem, afinal, o toque da nova ordem educativa que se tenta promover mundialmente e onde nada é o que parece: o pensamento crítico que se enuncia traduz-se, no encontro da Autonomia e Flexibilidade Curricular, em pensamento único, sem espaço para a crítica, a inquietação, o contraditório.

A avaliar pelo teor do discurso, a senhora Amapola Alama parece ter uma visão algo totalitária do currículo, que aparentemente não liga com a tão propalada, entre nós, autonomia das escolas. Seria estranho, se não conhecêssemos já a concepção centralista que o actual ME tem da dita autonomia: trata-se apenas de, em cada lado, se encontrar a melhor forma de cumprir as ordens, dadas na forma de desejos, dos responsáveis ministeriais.

Neste jogo de dissimulações e enganos, onde nada é o que parece, há ainda assim um momento revelador: quando a especialista da UNESCO exorta as direcções escolares a domesticarem os seus professores “desalinhados”… Eis, no seu esplendor, a escola das competências, sempre desconfiada dos professores incompetentes…

“Vocês são o ‘Rolls-Royce’ dos sistemas de educação. Estão entre os 40 países de topo no mundo da educação”, disse a especialista à plateia, constituída sobretudo por diretores de agrupamentos escolares e centros de formação, representantes dos organismos da tutela e outros profissionais e agentes do setor.

Amapola Alama defendeu que “o currículo é a força motriz de um sistema educativo e dá forma à visão que um país tem para a sua educação”, na medida em que, tanto ao nível técnico como político, estabelece “o quê, o como e o para quem” de todos os patamares do processo, abrangendo desde manuais escolares, a infraestruturas físicas e modelos de gestão.

Referindo que o Bureau Internacional da Educação está atualmente “a ajudar 48 países nas suas reformas políticas relativas à educação”, a especialista alerta, contudo, que um problema comum é “a incoerência entre o currículo implementado e aquele a que efetivamente se acede” – como acontece, por exemplo, “quando a instituição de ensino não alinha os seus professores com o que o currículo determina e, apesar de ter mudado para um modelo baseado em competências, os docentes continuam a só avaliar os alunos pelo que aprendem de cor”.

Pior não fica?

A análise do discurso de João Costa, assente na retórica provinciana do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projecto”, da “flexibilidade pedagógica”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, expõe uma mistura de lemas gastos com teorias pedagógicas que foram abandonadas porque falharam, depois de terem lançado a confusão no sistema de ensino.

Quando se junta hoje a melodia das “aprendizagens essenciais” ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”, vemos o que a música de João Costa deu: um desconcerto nacional, particularmente para os que já chegam à Escola marcados pela sorte madrasta de terem nascido em meios desfavorecidos. Porque a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso. Mascara-o. Porque os experimentalismos assentes no abaixamento da fasquia não puxam pelos que ficam para trás. Afundam-nos. Porque o escrutínio sério das políticas educativas de João Costa, que só um pensamento crítico livre de contaminações ideológicas permite, demonstra-o.

Coerente com as críticas que foi fazendo, ao longo dos últimos seis anos, ao ministro de facto da Educação, Santana Castilho não cede, nem no dia da tomada de posse, às conveniências do “estado de graça” que alguns pretendem atribuir a João Costa, o anterior secretário de Estado que é agora ministro de pleno direito.

Em boa verdade, como se poderá esperar que João Costa altere um sistema educativo reconstruído em torno de ideologias e convicções falhadas, quando foi ele mesmo que esteve no centro do turbilhão de mudanças? O experimentalismo permanente e irresponsável, o crescimento galopante da burocracia escolar, o facilitismo das aprendizagens inclusivas, a desconstrução não apenas dos currículos mas também dos instrumentos necessários a uma avaliação séria dos resultados das reformas promovidas: este é o legado do costismo educativo, e nada na postura do novo ministro nos sugere que aprendeu com os erros, que se dispõe a melhorar ou a fazer diferente.

Pior do que está não fica, terá pensado António Costa quando decidiu promover o seu homónimo a ministro. Infelizmente, no mundo da Educação a experiência tem mostrado o contrário: mesmo quando parece que já se bateu no fundo, alguém se encarrega de demonstrar que é sempre possível descer ainda mais.

Um ministério contente consigo próprio

Ao longo do processo de acompanhamento e monitorização das escolas, continua a verificar-se a concretização da Autonomia e Flexibilidade Curricular a nível nacional, conduzindo à ambicionada Escola autónoma que gera uma Educação de qualidade para os seus alunos, conhecedora da confiança depositada em si, com a assunção da responsabilidade inerente à sua missão. O reforço da autonomia da escola e dos seus profissionais relativamente ao desenvolvimento curricular colocam-na como detentora de instrumentos que possibilitam a gestão do currículo, de forma a integrar estratégias promotoras de melhores aprendizagens, em contextos específicos e perante as necessidades de diferentes alunos, assim como estabelecendo prioridades na sua apropriação e assumindo a diversidade nas opções que melhor se adequam aos desafios do seu projeto educativo.

Continuamos a percorrer um caminho para uma Escola inclusiva, que respeita a heterogeneidade dos alunos, elimina obstáculos no acesso às aprendizagens, contemplando a diversidade e garantindo a aquisição de múltiplas literacias necessárias ao cidadão do Século XXI, na sua formação integral ao mesmo tempo que valoriza os alunos, lhes dá voz e possibilita a construção do seu projeto de vida, ao traçar um percurso formativo próprio.

Cada escola é convidada, no contexto da AFC e na prossecução da sua missão social, a garantir o combate às desigualdades, definir uma visão de escola concreta para os alunos que a frequentam e acreditar que todos têm o direito de aprender e de lhes ser proporcionada uma educação relevante e de qualidade.

Escolas atoladas em burocracia, elevados níveis de stress, burnout e baixas por doença entre o pessoal docente, falta de professores, turmas numerosas, facilitismo avaliativo e problemas sérios, como o absentismo escolar e a indisciplina, varridos para debaixo do tapete, enquanto se martelam estatísticas e se superam, no papel, os objectivos predefinidos.

Claro que, em vez de um retrato real do que se passa nas escolas portuguesas – e é evidente que existem aqui muitas nuances, sendo que as que melhor trabalham são, regra geral, as que melhor conseguem fintar os desmandos ministeriais – a equipa que acompanha a implantação de flexibilidade curricular e dos planos de inovação prefere fingir que vivemos no melhor dos mundos educativos. Ao longo das cem páginas do relatório agora publicado, escrito naquele eduquês cediço e intragável, o tom é o do auto-elogio, da reprodução acrítica e obsessiva dos chavões ocos e enganadores a que se resume a política deste ministério: autonomia, quando nunca houve tanto controleirismo da parte da tutela; flexibilidade curricular, eufemismo para desmantelamento do currículo e desvalorização dos saberes disciplinares; inovação, para designar a reciclagem das velhas práticas pedagógicas, datadas e ineficazes, dos mestres de Boston.

Como professor básico e secundário, um ser imperfeito que às vezes se engana e muitas vezes tem dúvidas, o que sempre me impressiona neste tipo de documentos são as certezas dos seus autores. Não há ali uma perplexidade, uma interrogação, uma dúvida em relação ao que andam a fazer. Eles que tanto questionam, nas “reuniões de rede”, o trabalho das escolas, não se mostram capazes, por uma vez que seja, de fazer uma avaliação honesta do seu próprio trabalho, que no fundo se resume a uma função muito pouco abonatória: a de comissários políticos do SE Costa. Avaliação excelente, vaticina o Paulo Guinote, ao que eu acrescento: para todos, que quotas avaliativas são só para os professorzecos “avessos à mudança”.

O fim da História?

As alterações impostas pelo decreto-lei 55/2018 reforçaram uma tendência de menorização curricular da História, reduzida agora, na maioria das escolas e dos anos de escolaridade, a dois escassos tempos lectivos de 45 ou 50 minutos. E continua, ao contrário do que sucede noutros países culturalmente próximos, completamente ausente do currículo obrigatório no ensino secundário.

Luís Filipe Torgal revisita esta realidade que nunca será demais denunciar. Subscrevendo por inteiro as suas palavras, divulgo também por aqui o artigo publicado na imprensa local.

Não pretendo debater aqui a obra polémica de Francis Fukuyama (O fim da História e o último homem, 1992), apesar de sabermos hoje que as sociedades humanas nunca estiveram, porventura, tão longe de atingirem uma fase terminal de estabilidade e progresso. Este texto visa tão-só reiterar que a História (a «História-ciência» e a «História-docência») está a ser menorizada e banida das escolas portuguesas.

Nos últimos anos, os tempos letivos destinados à lecionação da História minguaram indecorosamente no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, bem como no ensino secundário. Para isso contribuiu a conversão das aulas de 45 minutos em aulas de 50 minutos, que determinou uma nova e discutível arrumação curricular. Nesse reordenamento, a disciplina de História e Geografia de Portugal perdeu um tempo letivo, no 2.º ciclo; no 3.º ciclo, História perdeu um tempo letivo e no secundário perdeu pelo menos dois tempos letivos. 

Para agravar a situação da disciplina de História contribuiu também o regime de autonomia e a flexibilização curricular dos ensinos básico e secundário introduzidos pelo atual ministro da Educação, que — pasme-se — consentiu que a híbrida, redundante e por isso dispensável disciplina de Cidadania e Desenvolvimento roubasse, no 3.º ciclo, mais um tempo letivo destinado ao ensino da História.

Por conseguinte, nos últimos anos, as disciplinas de História perderam, no mínimo, um total de cinco tempos letivos, nos ensinos básico e secundário. Redução letiva que, interessa acrescentar, não foi acompanhada por uma contração dos programas, ocorreu num momento em que o Ministério da Educação enfatiza a importância de os alunos adquirirem competências cívicas e impele todos os professores a aplicarem metodologias «pedagógicas ativas», as quais necessitam de vários tempos letivos semanais para serem aplicadas com o mínimo de seriedade! Porventura, podem os professores de História recorrer a estas metodologias quando têm a seu cargo, na maioria das vezes, mais de 6 turmas e bem mais de 120 alunos, a quem lecionam somente dois tempos letivos de 50 minutos por semana?

O Plano 21/23 Escola +, recentemente engendrado pelo mesmo executivo da Educação, como resposta aos confinamentos das escolas provocados pelas vagas de COVID-19 (diga-se de passagem, documento grafado num eduquês sofisticado e repleto de intenções vagas, linguagem cabalística, propaganda, autoelogio e pedagogia fantasiosa), revela pouca ou nenhuma preocupação em recuperar os conhecimentos de História, a qual é, aliás, equiparada a uma Arte (?!). E os critérios de classificação das provas de exame nacional de História A e História B adotados pelo IAVE (Instituto de Avaliação Educativa) tendem a desvalorizar os parâmetros relativos à análise e interpretação de fontes e de produção de textos, para desse modo inflacionarem as médias das classificações nacionais destas disciplinas.      

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As matrizes curriculares tiram tempo à História, sim!

Apesar de não haver nada nos documentos oficiais que aponte para a diminuição dos tempos lectivos, a verdade é que, na grande maioria das escolas, e num quadro de autonomia dos estabelecimentos de ensino, se verifica uma diminuição efectiva, em muitos casos com a desculpa (esfarrapada e deslocada) de se ter de arranjar espaço para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento…

A troco de algo que ainda não consegui perceber, a Associação de Professores de História teve desde o primeiro momento uma atitude colaboracionista com a reforma curricular do SE João Costa, que se manteve mesmo quando se tornou evidente que a disciplina iria ser das maiores prejudicadas com os os devaneios autonomistas e flexibilizadores. Fica-lhes muito mal, agora, insistirem em atirar as culpas para as escolas na aplicação que fazem de matrizes curriculares onde a diminuição de tempos lectivos, tanto para a História como para a a Geografia, é clara e evidente:

Sou de História, mas sempre soube fazer contas, e julgo que Miguel Barros, o presidente da APH que proferiu as declarações ao Público que abrem este post, também o saberá. Expliquem-me então como dividem por exemplo os 225 minutos que, no 8.º ou no 9.º ano, estão atribuídos a História, a Geografia e a Cidadania e Desenvolvimento. Defendem que Geografia fique reduzida a 50 minutos semanais, para a História poder ter 150? Ou querem tirar tempos a outras disciplinas, e nesse caso, quais? E por que carga de água devem as escolas usar os seus 25% de autonomia para contrariar a matriz de referência do ministério? Mais: se os professores de História se mexem – com toda a legitimidade, uma vez que a associação que os representa não o faz – vamos partir do princípio que os outros não se mexem também, defendendo as horas das respectivas disciplinas? É um inequívoco sinal de pouca inteligência o não contarmos com a inteligência dos outros…

Se a arrogância e a hipocrisia do SE Costa são difíceis de suportar – é ouvir o discurso sonso em defesa das artes e das humanidades e reparar que estas são precisamente as áreas que sofrem maiores cortes a nível curricular – a política, decalcada da agenda educativa da OCDE, é fácil de entender: basta constatar qua as áreas disciplinares que são alvo dos testes internacionais promovidos pela organização – Língua materna, Matemática, Ciências – são precisamente as que ficam a salvo de cortes significativos. E nada disto é, como afirma Miguel Barros, “desculpa esfarrapada”. A introdução, em todos os anos do 2.º e 3.º ciclo, das disciplinas de Cidadania e de TIC, obriga a ir buscar tempo a outras disciplinas, uma vez que a mancha horária semanal se manteve inalterada. E o decreto-lei 55/2018 sinalizou claramente onde poderiam ser feitos os cortes…

O que é mais difícil de perceber é o estado de negação da APH, que continua a fingir não perceber como foi possível a calamidade que se abateu sobre o ensino da disciplina. A insistir em inquéritos aos professores para quantificar uma realidade que todos estamos fartos de conhecer, mas incapazes de assumir as suas responsabilidades perante os professores que tão mal representam. E provavelmente ainda na ilusão de que o SE Costa, depois de se ter servido deles enquanto idiotas úteis, vai agora ligar alguma coisa aos “inquéritos” ou às queixinhas contra a autonomia das escolas.

Se não conseguem fazer melhor, o meu conselho é que se demitam.

Reforma educativa em Espanha combate a memorização

O Ministério da Educação quer mudar profundamente a forma como se aprende na escola. Após a aprovação da nova lei da educação, a lei Celaá, o ministério iniciou a reforma do currículo, uma peça central do sistema educativo que abarca o que os estudantes estudam na escola e como deve ser avaliado. Os dois primeiros documentos desta alteração, a que EL PAÍS teve acesso, envolvem a substituição do sistema enciclopédico, constituído por longas listas de factos e conceitos, que os estudantes devem conseguir repetir, implementadas depois da lei Wert, por outro em que os estudantes aprendem a aplicar conhecimentos, conhecido como modelo de competências, que é defendido por instituições internacionais como a UE e a OCDE e que tem sido implementado nos últimos anos por Portugal, Finlândia, Quebec, País de Gales e Escócia.

Aprendizagens essenciais em vez de “programas extensos”, competências em lugar de “conhecimento enciclopédico”, “perfis de saída”, autonomia das escolas, flexibilidade curricular, transdisciplinaridade, projectos, trabalho colaborativo. Soa familiar? Pois o programa educativo da OCDE que a governação socialista implantou por cá está também a ser introduzido em Espanha pelo governo PSOE/Podemos. Está bem explicado na notícia do El País e é, como se vê, tudo menos original.

Entre o moderado optimismo de alguns, a oposição de outros e a expectativa de muitos, os professores espanhóis dividem-se na apreciação das intenções e sobretudo das concretizações do seu governo. Pois sabem bem que as boas vontades não chegam: melhorar a Educação implica investir no sector, contratando mais professores e pessoal de apoio, reduzindo o tamanho das turmas, que por lá facilmente continuam a chegar aos 30 alunos, apetrechando as escolas com os recursos necessários ao sucesso educativo. E também em Espanha, um país a braços com muitos problemas, parece improvável que exista vontade de abrir os cordões à bolsa para beneficiar o sector da Educação.

Mas há também quem critique os conceitos subjacentes a mais uma reforma educativa, como a falsa dicotomia conhecimentos/competências, a desvalorização do conhecimento de base, clássico e estruturante, em favor de vacuidades e modernidades estéreis, a desvalorização do esforço intelectual e da memorização. Que contudo continua a ser importante, mesmo para os seus detractores…

Alunos que não gostam da escola

Quase 30% dos alunos de 11, 13 e 15 anos não gostam da escola e a segunda coisa de que menos gostam é das aulas (35%). O número cresce há 20 anos e é uma das principais preocupações da presidente do Conselho Nacional da Educação (CNE), que teme novo “retrocesso” em ano de pandemia. Maria Emília Brederode Santos receia que os bons resultados académicos dos últimos anos tenham sido conseguidos “à custa do bem-estar dos alunos. O que é perigoso”, frisa ao JN.

O relatório “Estado da Educação 2019”, divulgado esta segunda-feira, alerta para o “crescente desgosto” dos alunos portugueses que são dos que se sentem mais pressionados entre os europeus. De acordo com dados do Health Behaviour in School-Aged Children de 2018, mencionado no relatório, para 87,2% a matéria é demasiada, para 84,9% é aborrecida e para 82% difícil, sendo a avaliação stressante para 77%. Os portugueses são ainda dos que menos fazem atividade física diária: só 12% dos rapazes e 5% das raparigas. Pior só franceses e italianos.

Há um discurso que se repete ano após ano nos relatórios sobre o estado da Educação e que inclui temas obrigatórios como o envelhecimento da classe docente ou as aulas secantes de que tantos alunos se queixam. Contudo, se no caso das queixas dos professores e da falta de atractividade da profissão a regra tem sido empurrar o problema com a barriga, em relação aos alunos já se acha “perigoso” deixar tudo como está.

É, no entanto, legítimo perguntar-se: depois de tanta flexibilidade curricular, DACs para todos os gostos e doses generosas de inclusão, o que mais haverá a fazer para evitar os “retrocessos” na felicidade dos alunos? Atendendo às queixas reportadas, será que é de aulas mais curtas, com menos matéria e temas mais fáceis e divertidos, que necessitamos? E já agora, mais mexidas, pois consta que os adolescentes portugueses se mexem pouco…

O que me parece é que a omnipresença dos telemóveis, das redes sociais e das realidades virtuais, a par de várias transformações que ocorreram nas estruturas e ambientes familiares, vêm moldando uma nova realidade em que estão imersas as novas gerações. Nesse sentido, o maior perigo de todos talvez seja o de correr atrás do prejuízo, cedendo à tentação de emular, na escola do século XXI, o facilitismo, o imediatismo e a permissividade que encontramos nas redes sociais, nos jogos online e noutros sites direccionados para os públicos juvenis.

Melhorar a escola e as respostas educativas que dá aos seus alunos deverá ser, em qualquer sistema educativo, um desafio permanente. Mas as mudanças que se fazem devem ser ponderadas e graduais, respondendo a necessidades reais e não a agendas políticas ou projectos pessoais. E devem existir objectivos claros e mobilizadores. Será que uma escola assente na inclusão por decreto, na desconstrução curricular gratuita e irresponsável, na vacuidade dos perfis e das competências e no facilitismo avaliativo é mesmo mais interessante e útil para os alunos?

Em contrapartida, há verdadeiras questões-tabu que o situacionismo educativo nunca levanta. Por exemplo, se fazemos gala de afirmar que os alunos portugueses são dos que menos gostam da escola, que sentido faz serem forçados a cumprir, até aos 18 anos, uma das escolaridades obrigatórias mais longas do mundo?

Com todos os seus defeitos e limitações, a verdade é que o sistema educativo tem vindo a fazer o seu papel na melhoria das qualificações das novas gerações. E o desencanto dos jovens com formações técnicas e científicas especializadas, que não conseguem emprego na sua área ou se vêem forçados a emigrar, é incomparavelmente superior, e bem mais preocupante, do que o do adolescente que descobre que o manual escolar não é tão entusiasmante como a consola de jogos.

O capitalismo cognitivo

Uma interessante entrevista com a filósofa catalã Marina Garcés ajuda-nos a desconstruir a imensa fraude que se esconde em chavões como flexibilidade ou inovação, com os quais se pretende dar forma à escola dita do século XXI. Quando OCDE e Banco Mundial, multinacionais tecnológicas e fundações milionárias recuperam, mais no discurso do que nas práticas, pedagogias alternativas inventadas no século XX, é óbvio que o que está em causa não é qualquer revolução educativa. Trata-se de uma nova faceta do sistema capitalista – capitalismo cognitivo, assim lhe chama Garcés – que tenta formatar a Educação, pondo-a ao serviço do capitalismo neoliberal e globalizado dominante nos nossos tempos.

A verdade é que, enquanto discutimos metodologias educativas, não questionamos as transformações económicas e sociais que impõem os novos paradigmas educativos. Deveríamos debater e decidir democraticamente, isso sim, os modelos económicos e sociais que queremos para o nosso futuro. E não a pedagogia que melhor se adapta as inevitabilidades que nos querem impor.

Fica um excerto da entrevista, traduzido da versão original em castelhano, e o convite para ler mais, aqui.

Denuncia a forma como o sistema se apropriou da linguagem da pedagogia renovadora. Soa um pouco a O Leopardo, uma mudança aparente para que tudo continue na mesma.

O neoliberalismo incorporou conceitos que eram anteriormente típicos da crítica institucional e das experiências de transformação social. A luta contra as hierarquias, a rigidez… Estas lógicas – típicas do capitalismo industrial – extravasam no capitalismo cognitivo, um sistema baseado na flexibilidade e no movimento constante. Em pedagogia, a consequência é que certas práticas em tempos revolucionárias têm uma parte da sua linguagem e modos de funcionamento transferidos para os modelos hegemónicos.

A inovação como sinónimo de mudança vertiginosa, repleta de novidades tecno-metodológicas. Com uma azáfama contínua que nos impede de abordar questões fundamentais como a que coloca: como queremos ser educados?

É uma distracção que é em parte deliberada – uma vez que os mercados vêem uma oportunidade de negócio e mesmo de formatar esses futuros ainda por definir – e em parte procedente da desorientação do nosso tempo. Esconde-se a crise educativa, que é uma crise de civilização, está a ser encoberta, reduzindo o debate à metodologia e tornando difícil imaginarmo-nos em relação aos outros e com respeito a futuros partilhados. Transformámos o debate pedagógico em rivalidade e conflito entre receitas superficiais.

Nesta desorientação impõe-se em todas as áreas, incluindo a educativa, a mensagem de que tudo é demasiado complexo para ser compreendido. E que, em qualquer caso, as possíveis explicações têm data de validade.

Instalámo-nos no óbvio da incerteza. Tudo é incerto, complexo, demasiado rápido… E em vez de procurar as ferramentas para poder ler o que acontece, para decifrar a realidade, resignamo-nos a procurar respostas eficazes à mudança permanente e a treinar-nos para este objectivo. A realidade como mudança permanente é uma definição vazia de valores, relações, afectos, propósitos. E conduz a uma educação meramente adaptativa.

A ideia de que uma transformação profunda não é viável é imposta às escolas. Que o máximo a que podemos aspirar é a acatar o que chama servidão adaptativa perante um mundo em que a obsolescência e a incerteza são a norma.

A noção de servidão adaptativa é fundamental para compreender porque é que já não estamos em relações de obediência mecânica. É verdade que se mantêm algumas directrizes rígidas: horários, faixas etárias… Mas o importante é que se tenta reduzir a nossa capacidade de aprendizagem a uma flexibilidade codificada que aspira a soluções imediatas.

Para o aluno esta é uma mensagem desanimadora: tudo muda, mas tu não podes mudar nada.

Há alguns anos, algumas estudantes do ensino secundário perguntaram-me: “Como nos podemos comprometer com o nosso futuro? Respondi-lhes que comprometendo-se com o seu presente. Mas parece que o presente está anulado, que não é mais do que uma passagem, um local de circulação. O que esta actividade adaptativa não permite perceber é a relação causal entre o presente e o futuro, precisamente porque se toma como certo que tu não vais causar nada: és uma função dessa mudança, não um agente da mesma, um sujeito político.

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