Tens um novo aluno na turma!

Vai-se a ver e o novo aluno irá ingressar numa turma do 1.º ano, é nepalês (não percebe nem fala uma palavra de Português) e é autista.

Para um burocrata da educação, parece simples, basta cumprir o “54”: identifica-se o caso à EMAEI, esta avalia a situação, decide as medidas a aplicar e cumpre-se o que for determinado.

O problema, claro, é aquele que todos os que trabalham, não em gabinetes de burocratas eduqueses mas em escolas a sério, já estão a antever: a falta de recursos das escolas para lidar com estas problemáticas, o que faz com que os RTP se tornem letra morta em muitas situações. Se em casos relativamente triviais os meios ao dispor já são claramente insuficientes, o que dizer de uma situação em que a comunicação com o aluno é virtualmente impossível e o estado de perturbação da criança a torna imprevisível?

A denúncia de Alberto Veronesi e Susana Mendes é esclarecedora e poupa-me a mais considerações.

Chegou um mail à escola, dizendo que viria mais uma criança, desta feita nepalesa, para o primeiro ano do ensino básico. Sem mais. Depois veio a criança, com tudo.

Este tudo é bem pesado para os que têm da Educação uma visão personalista. Mas leve, leve, para os idiotas úteis que pariram o Decreto-Lei nº 54/2018.

Deixem, caro Leitor, que lhe apresentemos, sumariamente, a última criança que a nossa escola recebeu. Sim, o que vai ler a seguir não é ficção. Passa-se na nossa escola. Na escola onde já não sabemos se ensinamos, se nos arrastamos penosamente como escravos das idiotices pedagógicas portuguesas, as do século XXI.

No primeiro dia do seu “despejo” na escola, correu pelos corredores, rebolou no chão, bateu nas paredes e portas que encontrou, entrou pelas salas, atirou-se para o chão, gritou, chorou, mordeu e bateu em todos os professores e auxiliares que a queriam ajudar.

Atualmente, dois meses depois, promovidas as medidas que os burocratas de serviço vazaram no citado Decreto-Lei nº 54/2018, a aluna começa a estar “incluída”, “integrada”: anda desorientada nos recreios; não compreende, como é óbvio, uma palavra de português; não pede para ir à casa de banho; se a professora não adivinha, faz as suas necessidades onde está, tendo inclusive defecado no chão do recreio, à frente dos colegas; algumas vezes já urinou na sala de aula, à frente de todos; durante as aulas grita, risca, rasga, morde e come (literalmente, sim, come) o material de trabalho dela e dos colegas; quando não é atendida imediatamente, sai do seu lugar, agarra a professora e bate-lhe; quando consegue acabar alguma tarefa, rebola na cadeira e vai para debaixo da mesa; quando ouve barulhos externos à sala, sai espavorida, sem dar cavaco à professora; quando, na hora do lanche, vai comer, aquilo de que não gosta deita para o chão; não sabe lavar as mãos sozinha; ao almoço come com as mãos e, muitas vezes, coloca aquilo de que não gosta no prato dos outros.

Sim, caro Leitor, foi feito o que a lei consigna!

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A questão cigana

Os ciganos são a derradeira cultura intrinsecamente nómada do mundo ocidental. Esse nomadismo, mais do que outras expressões sociais e culturais, define o essencial do antagonismo com a nossa sociedade sedentária, regulada e democrática. A generalidade dos ciganos recusa o nosso modelo de sociedade vivendo nas suas margens.

Os conflitos são por isso evidentes e constantes. Desde logo nos aspectos sociais. Ao contrário do que tantos proclamam e ainda mais gostariam de ver realizado a maioria dos ciganos não se quer de todo integrar. Pontualmente aproveitam os benefícios dos esforços por parte dos agentes da nossa sociedade, casas dos autarcas, apoios do Estado e outras benesses em nome da civilização, mas fazem-no de forma claramente oportunista e sempre temporária. Nesse domínio basta citar três exemplos.

A recusa em enviar as crianças para a escola; a rejeição da plena cidadania; o tratamento discriminatório das mulheres. Depois de muito programa e tanta boa vontade, nenhum destes objectivos integradores, ensino, participação social e igualdade sexual, resultou. A cultura cigana continua a ser anti-conhecimento; socialmente marginal e radicalmente patriarcal e machista.

Outro ponto de forte conflito diz respeito a um modo de vida e uma economia que assentam sobretudo na marginalidade e na ilegalidade face às leis vigentes. Os ciganos não se integram no nosso modelo económico, raramente legalizam empresas e actividades, praticamente não pagam impostos, negoceiam de preferência em dinheiro vivo e acima de tudo procuram os nichos da chamada economia paralela, contrafacção, recepção e comércio de produtos roubados, e, claro está, drogas, contrabandos e tudo o que circula à margem dos circuitos legais.

Vincent Van Gogh, Acampamento cigano perto de Arles (1888)

Leonel Moura debate, com desassombro e sem os habituais pruridos politicamente correctos, a “questão cigana”. Nas afirmações que faz (clicar no texto transcrito para prosseguir a leitura no site original) poderá haver uma ou outra afirmação discutível, esta ou aquela generalização eventualmente forçada, mas o essencial é difícil de rebater: sem ser preciso negar o óbvio, a discriminação e preconceito contra os ciganos que ainda persiste na sociedade portuguesa, do outro lado o que temos é, em larga medida, uma comunidade minoritária que não se integra porque não se quer integrar.

Pela minha parte, tento olhar estas questões com o possível optimismo e creio que, ainda que a um ritmo exasperantemente lento, a integração, tarefa para várias gerações e que na qual a escola assume um papel fulcral, vai fazendo o seu caminho. São ainda raros, mas começamos a ver jovens ciganos a concluir o secundário e até, nalguns casos, a ingressar no ensino superior. Raparigas ciganas a contrariar a cultura machista e o patriarcado das suas comunidades, a prosseguir estudos e a alcançar uma autonomia pessoal e profissional com que as suas mães e avós não conseguiriam sequer sonhar. No entanto, pelo que vamos constatando nas raras notícias da imprensa e do que vamos vendo e ouvindo à nossa volta, são ainda muito comuns os casos de absentismo e abandono escolar ou os casamentos forçados de menores. A desvalorização da cultura escolar e, de um modo geral, do conhecimento em que se baseia o modo de vida ocidental, continua a estigmatizar as crianças ciganas e a comprometer a sua escolarização e, consequentemente, as suas oportunidades futuras de inverter o ciclo da pobreza e da exclusão a que a etnia parece condenada.

O complexo desafio da integração das comunidades ciganas invoca a eterna questão dos direitos versus obrigações: é possível viver em sociedade invocando a igualdade e universalidade dos direitos, mas rejeitando os deveres e as obrigações inerentes, que num estado de direito se resumem a algo muito simples, que é o cumprimento da lei? Outra questão, não menos complexa; até que ponto a identidade étnica ou a diversidade cultural podem comprometer os direitos individuais? Dito por outras palavras, podem os hábitos e tradições da cultura cigana tornar-se lei, prevalecendo acima dos Direitos Humanos, da Constituição e das leis que se aplicam e defendem todos os cidadãos?

Chegados a este ponto, restam-me poucas dúvidas. Tal como Leonel Moura, recuso-me a aceitar que o Estado deva transigir com culturas retrógradas que condenam as crianças à ignorância e as mulheres à servidão dos maridos, abdicando de defender os direitos e a dignidade de todos os cidadãos. Abolimos, ao longo da História, a escravatura, a inquisição, a autocracia, o trabalho infantil, a pedofilia, enfrentando tradições seculares vinculadas à sociedade, à economia, à religião dominante. Devemos agora vergar-nos a práticas igualmente retrógradas e degradantes em nome de um falso multiculturalismo que nos conduz à negação dos nossos próprios valores culturais e civilizacionais? Não me parece. A liberdade, a igualdade de direitos, a dignidade humana e a justiça são pedras basilares da sociedade em que queremos viver. Devem, como tal, ser intransigentemente defendidas.

Signos…

O bom humor da Txitxa logo pela manhã…

Português do Brasil e exames de Portugal

A Associação de Professores de Português (APP) propôs ao Instituto de Avaliação Educativa (Iave) criar um grupo de trabalho no seu conselho científico para discutir a aceitação das variedades linguísticas codificadas do português nos exames nacionais. Segundo o Ministério da Educação, o presidente do Iave manifestou “disponibilidade para discutir o assunto com a referida associação, o que acontecerá brevemente”.

O número crescente de estudantes brasileiros a frequentar o sistema educativo português e a realizar os respectivos exames e provas nacionais levanta um problema que, de acordo com as promessas dos académicos e políticos que impuseram a actual ortografia, não deveria existir: na verdade, o Acordo Ortográfico de 1990 surgiu para, supostamente, unificar as ortografias divergentes, criando uma norma única do português escrito que seria aplicável e compreensível por todos os falantes em qualquer um dos países de língua oficial portuguesa. Ou seja, um brasileiro a responder em “brasileirês” numa prova que se espera redigida em português de Portugal não deveria constituir problema. Mas pelos vistos o problema existe mesmo e, à boa maneira portuguesa, será um dia destes nomeada uma comissão para se debruçar sobre o assunto. E pelo sim, pelo não a APP, apesar de sempre se ter mostrado entusiasta das virtudes da actual ortografia, também quer participar.

Quem nasce torto, lá diz o povo, tarde ou nunca se endireita, e o dito popular assenta como uma luva no famigerado AO90, que demorou 20 anos a ser oficialmente adoptado, num processo polémico, não sendo o seu uso, ainda hoje, consensual. O debate de ideias e argumentos contra e a favor dá para encher milhares de páginas, e não é este o tempo e o lugar para o revisitar. Recordo apenas, recorrendo ao elementar bom senso, que quando abandonamos critérios etimológicos e gramaticais para definir a norma escrita da língua e confiamos que ela se deve escrever como se fala, a conclusão é mais do que óbvia: se portugueses e brasileiros falam de forma diferente, estarão condenados, seguindo este critério, a escrever diferente também. De onde não vem mal ao mundo, note-se: a confusão surge apenas porque o acordo em vigor nasceu da vã promessa de uma unificação linguística que, assente naqueles pressupostos, seria sempre impossível de concretizar.

Contudo, as divergências entre as variantes escritas da língua não existem apenas na ortografia. Vocabulário e sintaxe apresentam também diferenças assinaláveis, o que coloca outro tipo de problemas, quando construções gramaticais em uso corrente no Brasil passam em Portugal por ser incorrectas. Ou vice-versa. E se quisermos complicar um pouco mais, devemos entrar também em consideração com os alunos oriundos dos PALOP: embora aqui as divergências com o português de Portugal sejam em menor número, elas não deixam de existir. Bem vistas as coisas, o grupo de trabalho do IAVE, APP e companhia terá por certo muito trabalho pela frente…

Chuva de atestados médicos

Desde o início do mês de setembro, já apresentaram baixa médica cerca de dois mil docentes, afirmou hoje o ministro da Educação, indicando que as 7.500 juntas médicas anunciadas para avaliar essas situações estão em fase de adjudicação.

O fenómeno, habitual por esta altura do ano, estará a ser potenciado pelas restrições introduzidas no regime da mobilidade por doença: docentes incapacitados de leccionar e que durante o Verão estiveram ao serviço, ou a gozar as férias, direito que não perdem por faltado por doença, entram agora de baixa médica. Que se prolongará, em muitos casos, até ao final do ano lectivo.

Arrisco-me a dizer que alguns destes professores ainda poderão regressar ao serviço se entretanto obtiverem deferimento aos seus pedidos de uma colocação mais perto de casa. Mas em muitos casos são situações que se arrastam no tempo, de professores que ficam doentes sempre que são chamados a trabalhar com alunos.

Não é popular dizer ou escrever isto, e não gostaria de ser mal interpretado, mas penso que estas situações não dignificam, nem as pessoas em causa, nem a profissão, nem a escola pública. Como já defendi anteriormente, deveria ser feita uma análise caso a caso, justa e rigorosa, que permitisse encontrar a melhor solução para cada um destes profissionais, distinguindo os que podem, com os necessários apoios, continuar a ser úteis na profissão em que se formaram, os que podem ser requalificados profissionalmente e finalmente aqueles que, estando de todo incapacitados para trabalhar, reúnem condições para a aposentação por invalidez.

O que temos actualmente é que não é, de todo, solução para um problema que se vem arrastando há décadas. O envelhecimento da classe docente e as condições inóspitas e degradantes em que muitos professores são forçados a trabalhar só vêm agravando.

Passei só com seis negativas!

Imagem daqui.

Tenho alguma dificuldade em alinhar no coro de críticas que tenho lido e ouvido a respeito dos alunos que passam de ano com muitas “negativas”.

É certo que a situação não é confortável para os professores nem para os alunos que se esforçaram para ter um bom aproveitamento. Poderá ser mesmo difícil de compreender para aqueles que verificam, surpresos, que passaram de ano apesar da carrada de “negas” que constam do registo de avaliação.

Mas esta situação justifica-se à luz do carácter excepcional das retenções nos anos intermédios de ciclo. Em vez de uma aplicação cega da regra contabilística que manda reter a partir de um certo número de níveis insatisfatórios, avaliam-se antes as vantagens pedagógicas da retenção para cada aluno em risco. E é essa avaliação caso a caso que pode determinar a passagem de ano.

Claro que o ideal é que os alunos passem de ano tendo aprendido. Mas quando isso não acontece e se percebe que a repetição de ano irá trazer ainda mais desmotivação e insucesso, a transição de ano acaba por ser uma alternativa a ponderar. Pedagogicamente, parecem-me mais correctas as passagens com as negativas na pauta, do que as votações de notas, que falseavam por completo a avaliação feita pelos professores. Em vez de notas fictícias que iludem o insucesso, o registo das notas atribuídas por cada docente não permite mistificações: fica a saber-se em que circunstâncias o aluno transitou e claramente sinalizado o trabalho de recuperação que terá de ser feito no ano seguinte.

A dismorfia do snapchat

Os resultados do estudo internacional, a que responderam 510 raparigas portuguesas entre os 10 e os 17 anos, são inquietantes. Mas estão em linha com a tendência internacional e não surpreendem quem vai lidando diariamente com adolescentes e tentando estar atento ao que se passa nesta faixa etária. Vejam-se as principais conclusões da psicóloga que apresentou os resultados:

Cerca de metade das jovens portuguesas inquiridas dizem que desejavam sentir-se mais autoconfiantes e sete em cada 10 afirma que gostavam de ter mais orgulho no seu corpo, realçou.

Em média, passam mais de duas horas por dia nas redes sociais, sendo que devido ao contexto pandémico, 70% passou a estar ainda mais tempo.

Apenas 50% das inquiridas consideram que as redes sociais são um fator positivo nas suas vidas, enquanto 41% afirmam que não conseguem ser elas mesmas e 25% lamentam que na vida real não possam assemelhar-se à pessoa que mostram ‘online’.

Segundo o inquérito que decorreu em março, 76% das raparigas com 13 anos usam filtros ou recorrem a aplicações para mudar a sua aparência nas fotografias. Em média, têm 12 anos quando utilizam pela primeira vez este tipo de funcionalidades.

Quase dois terços dizem que tentam editar ou esconder pelo menos uma característica do seu corpo antes de publicarem uma fotografia e 86% afirmam que publicam “selfies” para receberem comentários e “likes”.

“Elas não referem que publicam “selfies” porque lhes dá prazer, porque é uma forma de se expressarem, de terem uma presença “online” de encararem uma personagem. Não, elas assumem que é com vista a serem aceites, a serem apreciadas e se sentirem integradas e populares“, sublinhou.

A busca obsessiva da imagem corporal perfeita configura um transtorno psicológico que baixa a auto-estima destas raparigas e as leva mesmo, nalguns casos, a querer fazer cirurgias plásticas para alterar as partes do corpo que acham imperfeitas. Os especialistas chamam-lhe a dismorfia do snapchat, por ter sido esta a primeira rede social a incorporar filtros de edição rápida que permitem aos utilizadores alterar o seu aspecto nas selfies que publicam.

Como a maioria das perturbações de natureza psicológica, este problema não é de resolução fácil, e é evidente que a exposição prolongada e cada vez mais precoce às modas e influências das redes sociais tende a agravá-lo. Muitas das youtubers, instagrammers, vloggers e influencers que servem de modelo e inspiração às adolescentes apresentam corpos irreais, modificados por dietas, sessões de ginásio, poses estudadas e, claro, filtros de imagem. Como no mundo real estes resultados são impossíveis de obter o resultado é a inevitável frustração e perda de auto-estima.

Esta realidade é igualmente perturbadora no que revela de regressão ao nível das mentalidades e do enorme progresso, feito nas últimas décadas, em prol da emancipação feminina e dos direitos das mulheres. Nunca se falou tanto, como nos dias de hoje, em igualdade de género. E no entanto as redes sociais parecem estar a atrair as raparigas, cada vez mais cedo, para a perpetuação de estereótipos associados ao “sexo fraco”, que fazem depender a aceitação social da sua beleza física e da capacidade de agradar aos outros.

Ensino a distância não contou para a nota?

Escolas deram notas sem contar com o trabalho feito ao longo do 2.º período

É “frustrante”, dizem alunos. “Desmerece a evolução” dos estudantes, comentam pais. E é “errado”, reconhecem directores. No entanto, em muitas escolas, sobretudo do ensino secundário, o trabalho feito à distância durante o 2.º período quase não contou para as notas dadas aos alunos. Entre as razões para esta prática está o papel central que os testes escritos continuam a ter na avaliação e os receios quanto à sua fiabilidade no modelo de ensino remoto.

Como era previsível, a avaliação de um 2.º período maioritariamente leccionado online trouxe algum descontentamento a alunos e famílias. Neste contexto, é complicado avaliar com rigor, equidade e justiça. Sobretudo no ensino secundário, onde continua a ser usada a anacrónica escala de 0 a 20 valores e o ingresso no ensino superior é determinado, maioritariamente, pela média das notas obtidas nas diversas disciplinas.

Antevendo as dificuldades, houve até quem propusesse transformar o segundo momento de avaliação numa avaliação qualitativa, sem atribuição de classificações ou níveis, como sucedeu aliás nas escolas onde vigora a avaliação por semestres. Mas o ministério fez ouvidos de mercador, adoptando a atitude hipócrita e cobarde que já se vai tornando a sua imagem de marca: primeiro reiterou inteira confiança na autonomia das escolas, dando-lhes inteira liberdade para definirem os critérios de avaliação que entendessem. Mas vendo surgir as críticas, veio de imediato demarcar-se, sentenciando à posteriori o que deveria ter sido feito.

À partida, não é difícil concordar com a tese aparentemente consensual: embora à distância, alunos e professores continuaram a trabalhar, e esse trabalho deve ser avaliado, sob pena de estarmos a desmotivar quem se esforça, em benefício de quem pouco ou nada fez. Não com testes presenciais, por razões óbvias, mas buscando alternativas, seguindo a tendência no sentido da diversificação dos instrumentos de avaliação. O problema é que isto é fácil de enunciar, mas difícil, nalguns casos praticamente impossível, de concretizar.

Não foi em vão que se insistiu, antes e durante o confinamento, na ideia de que nada substitui o ensino presencial. Isso é também verdade em relação à avaliação: a fiabilidade e o rigor necessários para obter uma classificação, como é exigido no secundário, não se conseguem obter plenamente com os alunos fisicamente distantes do professor. Sendo inútil exigir milagres, também não adianta mandar substituir os testes por outra coisa qualquer, porque as alternativas, sejam fichas, questões-aula, trabalhos escritos ou produção oral, necessitariam que o professor controlasse as condições em que são realizadas pelos alunos. Esta observação directa é fácil de fazer na sala de aula, mas de um modo geral impraticável no ensino online.

Perante estes constrangimentos, e na ausência de orientações claras, cada escola procurou a solução avaliativa mais adequada às circunstâncias. Mais ousada e confiante, nas escolas do ensino básico, onde assume um carácter predominantemente formativo; mais prudente no secundário, onde as notas têm consequências determinantes no futuro académico dos alunos. E sempre com a consciência de se estar a jogar com um pau de dois bicos: valorizar em demasia o trabalho feito durante o período do confinamento escolar iria penalizar não apenas os alunos que não trabalharam porque não quiseram, mas também aqueles que ficaram privados das condições e apoios de que necessitariam para trabalhar autonomamente.

Virada esta página, para a frente é que é o caminho. Mais do que apontar o dedo às discrepâncias entre escolas e professores, é importante que o 3.º período possa servir para repor alguma normalidade avaliativa, recuperando, consolidando e valorizando as aprendizagens feitas a distância.

Lógica complicada

Se tens Cristo no palco podes dar espetáculos. Mas se tens palco mas não tens corpo de cristo não podes.

Se tens corpo de cristo e queres ir encher não podes mas podes ir encher saco para o super.

Podes comprar um mil-folhas no super mas não um livro com folhas.

Ao contrário do primeiro confinamento, logo assumido pela generalidade da população como uma inevitabilidade face ao aumento dos contágios e à necessidade de conter a pandemia antes de um previsível colapso dos sistemas de saúde, a versão 2.0 do mesmo, revista e aligeirada, não parece estar a suscitar o mesmo empenhamento cívico.

Desde logo, pela inconsistência e arbitrariedade das medidas. É certo que se acabam os horários ridículos de funcionamento das lojas e serviços e as confusas regras por concelho, em favor de regras mais gerais e perceptíveis. Mas é difícil compreender que se possa ir à missa mas não ao teatro. À raspadinha mas não ao cabeleireiro. À drogaria mas não à livraria. Que os restaurantes fechem mas as cantinas escolares permaneçam abertas. Que os ATL no interior das escolas – incluindo as escolas privadas – possam funcionar, mas não os que ficam fora das escolas..

Acima de tudo, parece-me muito difícil que o cidadão comum interiorize a necessidade de um confinamento rigoroso – ficar em casa sempre, saindo apenas por razões permitidas e de força maior – quando os seus filhos passam o dia inteiro, desconfinados, na escola.

A verdade é que na grande maioria das escolas não se cumprem distanciamentos, não há mesas individuais nem separadores em acrílico, as salas têm a lotação completa e não são arejadas como deve ser porque está muito frio. Ora se sucede tudo isto e os políticos de diversos quadrantes, secundados pelas autoridades de saúde, nos dizem que é seguro, então o que é inseguro?

Depois do desconfinamento irresponsável que faz já de Portugal um dos países europeus com mais casos e maior mortalidade devido à covid-19 – e a outras doenças que, por causa da pandemia, não são devidamente prevenidas e tratadas – o pior que nos poderia acontecer agora seria um confinamento a fazer de conta. Esperemos que não seja isso mesmo o que temos aí.

João Costa, ordem para reprovar…

Artur Mesquita Guimarães, colocou dois processos em Tribunal contra o Ministério de Educação porque os seus filhos, alunos de média de 5 e do Quadro de Honra, foram retidos dois anos devido a um Despacho assinado pelo Secretário de Estado da Educação, João Costa. O despacho, considerado pelos advogados como “ilegal e inconstitucional”, obriga os filhos de Artur a voltarem dois anos lectivos atrás, do 9º para o 7º ano, e do 7º para o 5º ano, argumentado-se no facto dos alunos não terem participado na nova disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, da qual os pais, por objecção de Consciência, não autorizaram os filhos a participar. 

O caso foi divulgado pela página Notícias Viriato, um site pretensamente informativo, mas na realidade dedicado à difusão de informação falsa e tendenciosa, ao serviço da agenda política da extrema-direita. Perante os factos truncados, a óbvia parcialidade do escriba e a ausência de contraditório, resisti até agora a escrever sobre o assunto. Mas como parece não estar a despertar o interesse da imprensa, exploro a informação disponível e deixo também a minha posição.

Aparentemente, tudo começou há dois anos atrás, com a introdução da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no ensino básico. O pai dos dois alunos em causa, invocando “objecção de consciência”, proibiu os filhos de frequentar as aulas de CD. Seguiu-se, aparentemente, uma troca de missivas e argumentos com a escola e as autoridades educativas, até que, passados dois anos, o SE João Costa entendeu que os alunos em causa, embora com boas notas a todas as disciplinas, não poderiam transitar de ano por não terem nem frequentado a disciplina nem cumprido o plano de recuperação das aprendizagens elaborado pela escola.

O Notícias Viriato publica o despacho de que foi dado conhecimento ao encarregado de educação, que também aqui republico, para que o leitor interessado consiga eventualmente ir mais longe do que eu na sua interpretação…

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Com a informação parcial e tendenciosa neste momento disponível, há ainda assim alguns pontos que interessa salientar:

  1. A legislação é clara relativamente aos procedimentos em caso de falta de assiduidade por motivos não justificados – no caso de uma disciplina com um tempo semanal, bastará uma falta injustificada para desencadear o processo – pelo que se estranho, tal como o Luís Braga, que um caso destes não tenha chegado à CPCJ e daí, face à reiterada recusa de colaboração da família, ao Tribunal de Família e Menores;
  2. A objecção de consciência invocada pelo pai não é, à luz da Constituição, um direito universal, mas sim uma prerrogativa que pode ser invocada apenas em casos e nos termos claramente explicados na Constituição e na lei, o que não se aplica, obviamente, à recusa desta ou daquela disciplina do currículo obrigatório – levado à letra, seria como um terraplanista recusar as aulas de Geografia ou um criacionista rejeitar a disciplina de Ciências;
  3. Se é ilegítima a posição do pai, também não me parece defensável a decisão ministerial, tomada ao arrepio de todas as filosofias da inclusão e da escola centrada no superior interesse do aluno que têm sido propagandeadas – todos os anos passam de ano dezenas, talvez centenas de milhares de alunos com classificações negativas e/ou excesso de faltas numa ou mais disciplinas, pelo que não faz sentido que estes alunos em concreto, com bom aproveitamento, estejam a ser “mandados para trás”.
  4. Acima de tudo, não é aceitável um caso destes estar a ser (mal) resolvido passados dois anos, com óbvios prejuízos para o interesse dos alunos em causa e que aparentemente nem a escola, nem o ME, nem o próprio encarregado de educação souberam salvaguardar.

No âmago da questão, que agora continuará a ser dirimida em tribunal, temos um pai de seis filhos católico e conservador, que defende a educação tradicionalista e o papel da família na transmissão de valores, contestando “modernices” como a sexualidade, interculturalidade ou as questões de género. E um secretário de Estado que, para dar o exemplo e assinalar uma questão de princípio, cai na armadilha e toma a decisão absurda de mandar alunos com bom aproveitamento repetir dois anos de escolaridade.

Evito fazer um juízo definitivo enquanto não obtiver informação mais completa ou novos desenvolvimentos do caso. Ainda assim, não posso deixar de notar, a concluir, que uma disciplina de “Cidadania” se prestará sempre a ser uma porta por onde os governos e outras organizações tentarão introduzir, nas escolas, a sua agenda política, enquanto alguns pais mais aguerridos contestarão a “doutrinação”.

As matérias propostas para as aulas de CD integram-se e articulam-se perfeitamente com os programas e aprendizagens de diversas disciplinas. E é aí que devem ser adequadamente tratadas, com o devido enquadramento nos conteúdos curriculares, abordadas de forma integrada e estruturada. Uma questão fundamental que, com a imposição da actual reforma curricular, nunca foi devidamente ponderada.