Tina Turner (1939-2023)

O mundo às avessas

A diretora da Florida’s Tallahassee Classical School, no estado norte-americano da Flórida, foi forçada a demitir-se após os pais de uma turma do sexto ano terem criticado que os seus filhos fossem expostos à escultura de David, da autoria de Michelangelo.

Hope Carrasquilla, que estava no cargo há cerca de um ano, disse ao portal HuffPost que a situação é “um pouco mais complicada do que isso”.

A ex-diretora explicou que, sempre que os alunos eram expostos a este tipo de materiais, uma carta era enviada previamente aos pais. Neste caso, no entanto, essa carta não chegou aos responsáveis pelos alunos, que se mostraram desgostados que os seus filhos vissem a famosa escultura. Três dos pais, aliás, garantiram que os filhos ficaram “perturbados” depois de ver a obra de arte. Um chegou a considerar que foi uma situação “pornográfica”.

Fico sem palavras. Ao longo de uma carreira de professor de História de mais de 30 anos, já terei mostrado o David de Miguel Ângelo a centenas, talvez milhares de alunos do 3.º ciclo. Nem teria como não o fazer. Trata-se de uma obra prima incontornável da arte renascentista, da autoria do mais importante escultor desta época. Trabalhasse eu num daqueles estados mais matarruanos da América de Cima e já teria sido provavelmente despedido inúmeras vezes, pois de todas as ocasiões em que leccionei o Renascimento nunca me ocorreu pedir autorização aos pais dos alunos para mostrar reproduções de estátuas ou pinturas.

Por mais voltas que se dê, não se encontra uma única perspectiva pela qual isto consiga ter algum sentido. Miúdos de 11 ou 12 anos, que é de quem estamos a falar, têm como companheiros telemóveis com internet, através dos quais podem aceder livremente – basta quererem – a todos os tipos de verdadeira pornografia. Além de conteúdos violentos, linguagem racista e sexista e todo o tipo de perversões que circulam à vara larga pela internet. Ficarão perturbados pela visão de um homem nu e da sua pilinha? Como é possível, em pleno século XXI, que ainda haja quem chame pornográfico a um nu clássico renascentista, sem se cobrir de vergonha e de ridículo?…

Por cá, estaremos ainda longe de chegar a este ponto, embora se saiba que a asneira tende a pegar de estaca e o moralismo hipócrita comece a adquirir, nesta modernidade rançosa do século XXI, categoria de valor universal. Mas por enquanto o nosso maior problema com a escultura ainda é outro: o indescritível mau-gosto de alguma estatuária que, paga com o dinheiro do contribuinte, prolifera por ruas e praças do país. Não é caso único, mas veja-se, a título de exemplo, a forma como em Vizela desbarataram 90 mil euros numa tentativa patética de homenagear António Guterres pelo papel que teve, enquanto primeiro-ministro, na elevação da vila a concelho. Tão feio que até dói…

Músicas do Mundo: Angelique Kidjo & Branford Marsalis – Lonlon (Bolero de Ravel)

Músicas do Mundo: Geraint Watkins & The Mosquitoes – Lucille

Como reter os professores na profissão?

O problema, que parece novidade entre os nossos decisores e opinadores desinformados, já existe há muitos anos noutros países. Por cá, as atenções focam-se na necessidade de atrair jovens à profissão. Contudo, a experiência internacional tem demonstrado que essa não é a parte mais complicada: basta alargar a base de recrutamento, exigindo menores habilitações dos candidatos – caminho que o ME, aliás, já começou a trilhar. Difícil é recrutar os melhores profissionais e conseguir mantê-los numa profissão difícil, exigente, na qual o reconhecimento escasseia e que, em termos remuneratórios, se mostra pouco competitiva com outras carreiras profissionais a que os professores podem ter acesso.

Na Califórnia, a principal associação de professores deste estado norte-americano realizou um inquérito alargado para tentar perceber quais são, na perspectiva dos professores, as mudanças mais importantes e necessárias para conseguir reter mais docentes na profissão. Num estado onde, em cada cinco professores, há um que admite abandonar a profissão nos próximos três anos, as respostas são esclarecedoras: quase todos os inquiridos são unânimes ao referir melhores salários, contratação de mais profissionais, redução do trabalho excessivo e turmas mais pequenas.

Resultado de políticas educativas impostas pela agenda da globalização e da nova economia, ditadas por gente muito distante da realidade das escolas, os problemas que afectam os professores são, cada vez mais, problemas globais, que não podem continuar a ser repetidamente ignorados nas sucessivas reformas e contra-reformas que se vão fazendo no sector da Educação…

Versão integral do inquérito aqui: Voices From The Classroom

Músicas de Verão: Caleb Klauder Country Band – C’est Le Moment

Músicas de Verão: Jessica Rhaye & The Ramshackle Parade – Blowin’ In The Wind

Músicas de Verão: Karolina Protsenko & Avelina Kushnir – Can’t Help Falling In Love

Músicas de Verão: Chuck Berry, Bruce Springsteen & The E Street Band – Johnny B. Goode

EUA, regresso ao passado

O procurador-geral do Missouri anunciou que este estado conservador dos Estados Unidos se tornou o “primeiro” a proibir interrupções voluntárias da gravidez, na sequência da decisão desta sexta-feira do Supremo Tribunal, que revogou o direito ao aborto.

“Este é um dia monumental para a santidade da vida”, disse Eric Schmitt numa mensagem na rede social Twitter acompanhada de uma imagem que o mostra a ratificar o texto que “verdadeiramente” acaba com o aborto no Missouri – um estado que na realidade só tinha uma clínica que permitia tal procedimento. […]

O Supremo Tribunal dos EUA anulou hoje a proteção do direito ao aborto em vigor no país desde 1973, numa decisão que permitirá a cada Estado decidir se mantém ou proíbe tal direito, sendo que dos 50 Estados norte-americanos metade deve aproveitar a oportunidade para impedir a interrupção voluntária da gravidez a curto ou longo prazo.

Vivemos acostumados à ideia de progresso, a todos os níveis, da Humanidade: acreditamos que a vida é melhor hoje do que no passado e, pelo menos os mais optimistas, que o futuro será ainda melhor do que o presente. Mas a verdade é que, se existem mudanças que, em termos históricos, são irreversíveis, há também conquistas que, parecendo definitivas, na verdade não o são. Se não permanecermos vigilantes e decididos na sua defesa, a qualquer momento se podem reverter.

Até há pouco tempo atrás, a despenalização, primeiro, e a legalização, depois, da interrupção voluntária da gravidez por decisão da mulher, aparentava ser um caminho sem regresso, na senda da emancipação feminina, da autodeterminação das mulheres em relação ao seu próprio corpo e do pleno direito à saúde sexual e reprodutiva. Afinal, bastou a chegada ao poder de Trump para que este, fazendo uso da prerrogativa presidencial de nomeação de juízes para o Supremo Tribunal, impusesse ali a maioria conservadora que agora revogou a protecção federal do direito ao aborto.

O caso é lamentável, desde logo pela desprotecção a que ficam sujeitas as mulheres desfavorecidas, nos estados mais pobres e conservadores, que queiram abortar, e que poderão ver-se forçadas a fazê-lo na clandestinidade e a ter de enfrentar a perseguição legal. As mais afortunadas, essas terão sempre a hipótese de viajar para outro estado para aí pôr termo à gravidez.

Preocupante é também o exemplo que os EUA estão a dar ao mundo: uma país tradicionalmente coeso na sua diversidade mostra-se cada vez mais dividido e fracturado entre liberais e conservadores, dois mundos paralelos cada vez mais distantes e com óbvias dificuldades em se entenderem. A última vez que tal sucedeu, há mais de 150 anos, o resultado foi uma guerra civil que deixou marcas profundas na sociedade e no modo de vida americano. Desta vez não creio que se chegue a tanto; mas que há aprendizes de feiticeiro a libertar demónios e a embriagar-se com o seu próprio poder, isso é bem evidente…