Choque fiscal

De acordo com as simulações publicadas, as espectaculares descidas de impostos sobre “quem trabalha” decididas pelo Governo determinarão quem tem um salário de 1000 euros mensais irá receber mais 1,60€ por mês. Quem recebe 1500 euros mensais irá ter, com a descida das taxas do IRS, mais 4,60€ em cada mês. Com um salário bruto de 2000 euros, o ganho será de 7,60€ mensais.

Será esta a grande reforma fiscal prometida pela direita, para desonerar os custos do trabalho e aumentar substancialmente o rendimento disponível dos trabalhadores?

Atendendo à modéstia dos números, o que parece é que a montanha em que alguns acreditaram se limitou afinal, como aliás seria inevitável, a parir um rato…

Contudo, as reformas fiscais não se ficam por aqui! Se sobre IRS estamos conversados, no IRC a conversa é outra. Como muito bem nota Ana Drago, vai mesmo haver choque fiscal. Só que não é para o nosso bico…

O ano de 2023 foi memorável. O sector bancário lucrou quase 12 milhões de euros por dia. Os cinco maiores bancos apresentaram 4,3 mil milhões de euros de resultados líquidos. O BCP, por exemplo, quadruplicou os resultados. Na EDP os lucros cresceram uns estrondosos 40%. Nos CTT cresceram 66%. A Galp teve o melhor resultado de toda a sua existência – fez-se história. Na Sonae os lucros subiram para 354 milhões; na Jerónimo Martins, os resultados cresceram 28%. Estas empresas, está bem de ver, precisam de ser acarinhadas. 

No passado, Passos Coelho e Vítor Gaspar foram autores do maior choque fiscal de sempre: o “enorme aumento de impostos” para trabalhadores, famílias e pensionistas. Nada na história da democracia portuguesa se aproximou de longe do seu impacto. Ao mesmo tempo, quando Passos fez e manteve os cortes nos salários e nas pensões, o IRC para as empresas desceu de 25% para 23%, e depois para 21%. Agora, a nova promessa do choque fiscal da AD também vai ser cumprida por Montenegro. Mas desta vez será apenas para as empresas. Na verdade, para as grandes empresas. Porque é só fazer as contas: como cerca de 48% da receita arrecadada em IRC é paga por 0,3% das empresas, o alívio fiscal é desenhado para as grandes empresas e vai ser bem real: 1500 milhões de euros. Compreendam de uma vez por todas – vai haver choque fiscal, só que não é para “nós”.  

Pensamento do dia

Se um macaco acumulasse mais bananas do que poderia comer, enquanto a maioria dos outros macacos morriam de fome, os cientistas estudariam esse macaco para descobrir que diabo haveria de errado com ele. Quando os humanos fazem isso, pomo-los na capa da Forbes.

Nathalie Robin Justice Gravel

Ricos cada vez mais ricos e cada vez menos mérito na obtenção da riqueza: os jovens milionários e bilionários herdam as fortunas dos pais e já nem precisam de fingir que estudaram e trabalharam muito para conseguirem tudo o que têm; basta-lhes viver a vida glamourosa e despreocupada que está na moda ostentar nas redes sociais. Conferir aqui:

Só há herdeiros, e nenhum génio precoce, entre os jovens bilionários da Forbes

Um governo de liberais

Apesar de terem saído goradas as negociações para a entrada de membros da Iniciativa Liberal no novo governo, o neoliberalismo não deixará de estar presente, e em força, na acção governativa.

Eis como o tanque-de-pensar oficioso da IL, o bem patrocinado Instituto Mais Liberdade, se congratula pelo facto de seis dos seus dirigentes e parceiros de iniciativas e tertúlias serem agora ministros. Em destaque, o “director não executivo” que irá dirigir a Educação.

Sempre achei que, embora o Chega fale mais alto, incomode mais gente e profira mais ameaças e bacoradas, a verdadeira ameaça à democracia e ao progresso económico e social continua a ser o neoliberalismo globalista. O populismo xenófobo e demagógico da extrema-direita é apenas o plano B da direita neoliberal, que também descartará facilmente a IL se puder alcançar os seus desígnios através de um PSD rendido à ideologia dos mercados.

Escola para todos, ou escola para ricos?

Em mais um dos seus muitos textos, reflexivos e intelectualmente estimulantes, Paulo Prudêncio escreve no Público sobre aquilo a que chama o modelo social-democrata de escola, em declínio, aparentemente irreversível, nas sociedades globalizadas e neoliberais dominantes nos nossos dias.

Esta modelo de escola social-democrata corresponde à escola pública universal, obrigatória e de qualidade que imperou, nos países desenvolvidos, após a Segunda Guerra Mundial. Naqueles 30 anos gloriosos que mediaram entre o fim do conflito e as crises petrolíferas da década de 70, as economias ocidentais cresceram a um ritmo nunca mais alcançado, as desigualdades sociais diminuíram e o Estado assumiu um papel de redistribuidor da riqueza, através de uma política de impostos progressivos e de promotor do bem-estar social, garantindo o acesso universal a serviços públicos de saúde, educação e segurança social. Se estes três vectores contribuíram para a melhoria da qualidade de vida das populações e o aumento da esperança média de vida, a Educação destaca-se por ter sido o principal pilar do chamado elevador social: aplicando-se com sucesso nos estudos, os filhos das classes trabalhadoras começaram a ter acesso às profissões mais qualificadas e bem remuneradas, até aí quase exclusivamente reservadas às elites.

Ora é este modelo que as políticas neoliberais, cortando na despesa pública e extinguindo empregos qualificados a maior velocidade do que os conseguem criar, estão a pôr em causa. Num futuro que em muitos lados já é presente, não será necessário que todos adquiram conhecimentos equivalentes ao actual 12.º ano, nem que a maioria dos jovens obtenha formação superior. Se a tendência de desinvestimento na Educação não for revertida, caminhamos a largos passos para um modelo de escola que muitos julgavam definitivamente ultrapassado: a escola de qualidade para formar as futuras elites, recrutadas, via colégios de mensalidades elevadas, entre a classe dominante, e uma escola low-cost, lúdica, facilitista e permissiva para entreter, socializar e conformar os filhos dos pobres e dos remediados. Paulo Prudêncio descreve o pesadelo que, se nada fizermos, bem poderá vir a tornar-se realidade diante dos nossos olhos:

Por este caminho, só teremos o modelo “social-democrata” em escolas para ricos. Aí, haverá professores com carreiras decentes e devidamente formados. A dimensão das turmas será pedagógica, o currículo completo e as ciências e as letras estarão a par. A avaliação dos alunos será contínua e exigente. As regras disciplinares serão claras e “ancestrais”. O calendário de provas e exames será estável e tecnicamente sensato. Os conteúdos digitais serão internos, evitando-se os massificados e a desastrosa perda de tempo das crianças e jovens com a adição tecnológica. A natureza e a tecnologia não rivalizarão, como se aprendeu desde o lápis de carvão. Usar-se-á, pagando, o modelo mais avançado da Inteligência Artificial (IA) generativa, acautelando-se a incerteza sobre o final da história com a IA: “será sobre máquinas, mas também sobre humanos”.

Nas escolas dos restantes, das massas, disfarçar-se-á a falta estrutural de professores, contrariando até a ONU. Reduzir-se-á os currículos. Os professores serão generalistas, como desenha a  OCDE/2035. Abordarão superficialmente disciplinas fundamentais e tendencialmente abandonadas: História, Filosofia, Literatura, Geografia e Artes. A monodocência (do 1º ciclo por cá) será o modelo escolhido. É irresistível para as contas certas, mas acelera a infantilização da educação. Há diversas formas de o aplicar. No caso português, a monodocência reduz o número de professores do 2º ciclo de 20 mil para 2 mil e do 3º ciclo e secundário de 70 mil para 10 mil.

Como compensação, os assistentes digitais da Google e da Microsoft apoiarão o monodocente e o aluno-rei. Dominarão o currículo e avaliarão os intervenientes. Não se usará a IA generativa por desconhecimento na utilização. Os raros acessos serão a modelos gratuitos. A dimensão das turmas será desprezada. A obsessão com exames e provas (como se obter dados, e para se perceber melhor, fosse suficiente para combater as causas das alterações climáticas), ou o seu contrário, atormentarão a organização das escolas. Os dirigentes escolares, organizados em associações de classe, serão autocratas de carreira. Alargarão o emprego partidário e executarão o objectivo fundamental: manter abertas as portas das escolas, custe o que custar. A avaliação de monodocentes continuará doentia. Haverá prémios de desempenho inspirados na meritocracia para massas expostas ao modelo de todos contra todos e a experimentalismos comprovadamente desastrosos da família do cheque-ensino. Os processos disciplinares e as reprovações dos alunos serão em ambiente de burocratização infernal, e sem apoios efectivos para os que “não querem aprender”.

Quando os agricultores param a Europa

Para lá do artificialismo dos conflitos geracionais e identitários, a velha luta de classes subsiste no mundo pós-industrial. A vaga de protestos dos agricultores europeus é disso um bom exemplo, por muito que os media tentem desviar o foco do essencial : proprietários e pequenos empresários agrícolas lutam para não serem reduzidos à condição de assalariados rurais, engolidos na voragem do agro-negócio, enquanto os poderes dominantes na UE põem em causa os tradicionais equilíbrios da PAC, cobiçando os alimentos baratos da Ucrânia e da América do Sul.

Que relação existe entre o mega-protesto dos agricultores europeus, o veganismo, os mortos e estropiados na guerra da Ucrânia, a transição verde na Europa e a catástrofe agrícola e ambiental no Brasil? A historiadora Raquel Varela demonstra como, para entendermos e nos orientarmos no mundo em que vivemos, a História continua a funcionar melhor do que qualquer GPS de última geração.

A transição do feudalismo ao capitalismo só é possível com a expropriação dos camponeses, que passam a assalariados agrícolas de grandes propriedades. Estas dores de parto geram revoltas épicas, com efeitos de arrastamento para toda a sociedade. Não há mi-mi-mi e negociações delicadas, é com foices no século XIX e tratores no XX. Lutam a sério. Lutam com as armas de trabalho.

A PAC (Política Agrícola Comum) é o instrumento europeu mais bem sucedido de garantir expropriação sem expropriação, ou seja, a agricultura tornava-se capitalista, produzindo com recurso a técnicas intensivas, culturas escolhidas (leite e cereais), mas os agricultores recebiam subsídios para manter uma quantidade razoável de pequenos e médios agricultores no campo, evitando as suas revoltas, lado a lado com as grandes explorações. A tese mais importante sobre isto é de um historiador social democrata, europeista convicto, e sério, Kiran Patel, com quem trabalhei em Munique, foi ele que me chamou a atenção para este facto essencial – a PAC foi a contenção dos camponeses e só ela tornou possível a UE porque evitou as revoltas (pode ser lido no seu livro Project Europe).
Assim, a mais capitalista das explorações, propriedade de bancos, convive na Europa, com o pequeno e médio agricultor.

A queda da taxa de lucro das empresas na Europa, depois de 2008, levou-as em busca de uma nova fase de expropriações, agora só há lugar para as grandes corporações, querem arrasar com o que resta dos pequenos agricultores, abrindo o mercado ucraniano (para quem tinha dúvidas fica claro o objectivo “democrático” no apoio à guerra na Ucrânia, é que as terras da Ucrânia ocidental foram vendidas em 2019 por Zellensky às corporações norte-americanas e europeias) e o Mercosul, onde países como o Brasil têm 40% da população a passar fome mas são chamados a virar toda a produção para o mercado europeu, com soja, por exemplo, que alimenta a carne na Europa.

Enquanto não convencem os europeus todos a ser vegetarianos – como se o consumo de proteína animal não fosse essencial ao cérebro – e martelam que comer animais faz mal à saúde e à alma, fazem dos europeus a carnificina dos lucros, a UE/corporações económicas, aqui pilotados pela líder de direita alemã e ultraliberal Ursula, decretam que os produtos da Ucrânia entram sem taxas, diminuem as do Mercosul (Brasil e Argentina), e fazem entrar produtos sem garantias e controlo sanitário assegurado do Norte de África, enquanto aqui exigem aos agricultores controles burocráticos insustentáveis e kafkianos. Ah! Claro, tudo isto em nome da “transição verde”, “ecologia” e “sustentabilidade”, as palavras que Ursula, enquanto desembolsa 50 mil milhões de euros dos nossos imposto para armamento à Ucrânia – destruída – usa mais, mais guerra mas sempre chamando-lhe sustentabilidade e democracia.

A tentativa de expropriar os camponeses teve uma reacção em cadeira gigante, chama-se – é preciso deixar de ter medo das palavras, se não não se explica nem compreende a sociedade – luta de classes. Ontem houve luta de classes, e os de cima ficaram ansiosos, recuaram nas leis, despejara milhões em poucas horas para parar os tratores de avançar sobre as capitais, onde os accionistas de bancos comem carne do lombo com trufa negra e champanhe. Ursula quer lucros para capitalizar a terra, são os Bancos e os seus accionistas que querem ser donos das terras. Os agricultores pararam a Europa em resposta, em apenas 1 dia, toda a Europa parou. Nenhum lei contra o corte de estadas foi acionada porque como dizia o mestre Howard Zinn, historiador, “se queres quebra a lei fá-lo com pelo menos 2 mil pessoas”. Não querem virar assalariados agrícolas, mais uns milhares de homens e mulheres a trabalhar como nepaleses, escravos apinhados em contentores, é contra isto que lutam, contra a sua proletarização.

O tio facho e o primo liberal

Um guia para a noite da Consoada, divulgado nas redes sociais pelo Bloco de Esquerda. Muito bom!…

O Natal é partilha, convívio e alegria. Mas também pode ser aquele momento difícil em que se é confrontado com tiradas conservadoras, preconceituosas e estereotipadas de familiares e amigos.

Se já estás a sofrer por antecipação, relaxa.

Não vais ter de ficar em silêncio nem perder a cabeça: aqui tens o guia para, na noite de consoada, deixar sem resposta aquele tio facho e ou o primo liberal que insistem em fazer-se ouvir.

Leituras: A mercantilização do saber

Não me parece que as empresas procurem um determinado modelo de educação e de competências, parece-me ser-lhes indiferente, porque o que procuram são licenciaturas em universidades de prestígio que ofereçam alunos com percursos aceitáveis, quer pela sua origem social, quer pela seleção prévia dessas instituições.

O que acontece é que se criaram protocolos globais que tentam homogeneizar a formação imitando o imaginário das universidades de “excelência” (que na realidade, dado que já seleccionaram os alunos “excelentes”, costumam ser muito mais abertas do que o resto das imitadoras).

O que se criou foi uma enorme burocracia que vive da imposição de indicadores de qualidade que inventa para a sua própria existência. Infelizmente, este é um mal que afecta não só a educação, mas todas as instituições (a protocolização dos cuidados de saúde, de todos os serviços públicos, etc.). Na realidade, nada disto tem a ver com a economia real, mas sim com a economia imaginária (as empresas de consultoria estão a fazer coisas semelhantes com as empresas). Não há receitas fáceis para inverter este processo, mas há formas de resistir, fazendo da sala de aula um espaço e um tempo de liberdade, de crítica e de compromisso com a verdade e o conhecimento.

Fernando Broncano

Leituras: Uma educação neoliberal

A educação tem sido uma política importante em diferentes regimes. Nos regimes capitalistas, especialmente após a II Guerra Mundial, houve um enorme impulso educativo. Nos regimes comunistas, por definição, a educação era considerada algo que devia estar ao alcance de toda a gente. E, claro, os países que se tornaram independentes na década de 1960 também tiveram um grande impulso.

É interessante o trabalho que [o economista espanhol] Leandro Prados fez sobre as mudanças históricas nos três componentes do Desenvolvimento Humano: rendimento, saúde e educação. Ele concluiu que as melhorias na educação estavam presentes na década de 1930, apesar do declínio em métricas convencionais de democracia, particularmente nos países mais desenvolvidos.

No entanto, há várias questões. Em primeiro lugar, o aumento da educação já não pode ser visto como uma força que aumenta a produção em muitos países. Os países atingiram quase um máximo de escolaridade. Se há um máximo de cerca de 16 anos de educação [no mundo desenvolvido], esses países não podem chegar a um máximo de 20 ou 25 anos. Isso não faz sentido [do ponto de vista económico].

E depois há questões sobre a qualidade do ensino, nomeadamente a extrema mercantilização do ensino. Isto é particularmente verdade no caso da Economia, que se assemelha cada vez mais ao mundo dos negócios, que é uma espécie de ramo da Economia empresarial.

Isto é lamentável, porque a Gestão e a Economia sempre estiveram separadas. A Gestão era gerir a empresa, é uma competência prática. A Economia é uma ciência social que discute a evolução das sociedades e os factores económicos funcionais, mas isso tem vindo a ser muito menos destacado.

Isto deve-se, em parte, ao sistema de financiamento, porque [as faculdades] dependem de grandes doadores e empresas. As grandes empresas não estão interessadas em financiar alguém para estudar se Karl Marx estava certo ou errado. As grandes empresas estão interessadas em financiar alguém que saiba como despedir trabalhadores, ou contratar trabalhadores para a sua empresa. Isso é compreensível, mas não é Economia.

Sou bastante pessimista em relação à Economia. Ainda hoje li um artigo de Angus Deaton que diz, de forma algo semelhante, que a Economia se tem concentrado tanto nas questões dos mercados e da eficiência que se esqueceu das pessoas que estão por detrás dela.

Branko Milanović, entrevistado por Guilherme Rodrigues e João Murta

Chile, 11/09/1973 – o triunfo do neoliberalismo

Cinquenta anos volvidos sobre o 11 de Setembro chileno, o sangrento golpe militar que pôs fim ao regime democrático liderado por Salvador Allende, instaurando uma cruel, vingativa e repressiva ditadura militar, importa recordar, mais do que a sucessão de acontecimentos, o significado deste golpe de Estado, secretamente patrocinado pelos EUA.

Na verdade, tratou-se de um evento percursor: colocou um travão às experiências democráticas e emancipadoras que iam florescendo na América Latina e ao modelo keynesiano de desenvolvimento económico que garantiu três décadas de prosperidade ao mundo desenvolvido, criando no Chile uma espécie de laboratório de ensaios para a implementação das teses, hoje dominantes, do neoliberalismo económico.

Houvesse coerência e sinceridade na política, e estariam hoje todos os que no século XXI se dizem liberais a saudar a memória de Augusto Pinochet, o general que deu carta branca à rapaziada de Chicago para fazer o que quisesse da economia chilena.

11/09/1973, Bombardeamento do Palácio La Moneda, sede do Governo chileno

[…] Visto a 50 anos de distância, o golpe contra o governo legitimamente eleito de Salvador Allende “é um marco histórico: impôs um modelo, apelidado neoliberal, através do exercício de uma violência brutal contra as classes populares”, acrescenta Toussaint na entrevista a La Jornada.

“O modelo neoliberal – seja na versão chilena de Pinochet, na argentina de Carlos Menem, ou na mexicana de Carlos Salinas de Gortari – descambou em fracasso, apesar de todos os discursos sobre o suposto milagre. Do ponto de vista histórico, para a América Latina representou a privatização das suas economias e a ‘reprimarização’ (regressão de uma economia que passou por um processo de industrialização diversificada, tornando-se mais dependente das suas exportações de matérias-primas – petróleo, gás, minerais sólidos, produtos agrícolas)”, aponta Toussaint, crítico das políticas dos organismos financeiros internacionais em relação aos países do Sul, internacionalista e animador de movimentos como o Fórum Social Mundial.

Com o regime ditatorial de Augusto Pinochet, o general que encabeçou o golpe contra o presidente Allende, “inaugurou-se a onda neoliberal e a aplicação não só de um modelo económico, mas também político”. O Chile, considera Toussaint, foi o laboratório para a imposição desse modelo, baseado, entre outras ações, numa redução da intervenção do sector público na regulação das atividades económicas, acrescida da privatização de recursos estratégicos e da transferência para o sector privado de serviços como a saúde e a educação.

Em matéria de políticas económicas, o golpe militar chileno ocorreu num contexto específico, segundo Toussaint: as décadas anteriores foram marcadas por políticas de crescimento e desenvolvimento orientadas pelo Estado, lançadas após o fim da Segunda Guerra Mundial nos países do Norte. Nesse contexto, economistas como Milton Friedman, que na Universidade de Chicago formou os principais economistas que levaram a cabo o modelo económico da ditadura chilena, “ou pensadores reacionários” inspirados na chamada Escola Austríaca, ambicionavam, nos inícios da década de 1970, pôr fim a um período de mais de três décadas – consoante as regiões – e impor uma reviravolta a favor dos interesses das grandes empresas – interesses esses que, no caso do Chile, foram impostos literalmente à ponta de baioneta.

[…]

O golpe de Pinochet foi “o início de uma viagem” que teve outros dois marcos com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan na Casa Branca, em 1980. “Trata-se de marcos históricos, da imposição de um modelo económico através do uso de uma violência brutal contra as classes populares e os movimentos de esquerda, como também aconteceu no Uruguai e na Argentina”. Foi, acrescenta, “um período terrível de repressão na América Latina. Por isso falamos de um modelo económico, o neoliberal, com uma dimensão política muito clara, conservadora e inclusivamente acompanhada de repressão massiva, como aconteceu no Chile e na Argentina, por parte das forças armadas”.

Toussaint chama a atenção para o facto de, em concomitância com o golpe de estado no Chile, ter havido não só o apoio dos EUA, do seu exército e das suas organizações de espionagem, mas também de organismos financeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Colaborador, o tanas!

De onde vem esta mania de chamar “colaboradores” aos trabalhadores?

É certo que o jargão das “ciências do trabalho e da empresa” está há muito contaminado com termos importados de outras línguas e mesmo de anglicismos que nem se dão ao trabalho de traduzir. Contudo, em nenhum dos países dos quais gostamos de importar a terminologia e as modas se chama “colaborador”, ou algo semelhante, ao trabalhador por conta de outrem.

Falta de termos apropriados na língua portuguesa, também não parece ser o caso. Empregado, funcionário, assalariado, além obviamente de trabalhador, são palavras comuns que sempre serviram para designar adequadamente a situação de quem trabalha em troca de um salário.

De onde vem, então, o “colaborador”, designação que o neoliberalismo à portuguesa tenta normalizar?

A resposta, surpreendente ou talvez não, foi dada recentemente por Manuel Carvalho da Silva, antigo líder da CGTP e actualmente um académico dedicado às questões do trabalho: o termo surgiu no corporativismo do Estado Novo, adquirindo consagração legal no Estatuto do Trabalho Nacional.

Vale a pena recordar que uma das primeiras medidas dos liberais históricos, quando conquistaram o poder, foi a abolição de tudo o que cheirasse a corporativismo: um Estado assente na liberdade económica e na livre iniciativa não poderia estar amarrado a velhas instituições que limitavam a concorrência, protegiam monopólios, restringiam a inovação tecnológica.

Já o neoliberalismo português do século XXI, em contrapartida, tem a sua matriz no conservadorismo económico e social do Estado Novo e dela não se consegue libertar. Uma direita ressabiada, saudosista do autoritarismo e dos privilégios de outros tempos, que apenas se distingue dos cheganos por ostentar um pouco mais de pedigree. Como, nas grandes como nas pequenas coisas, todos vamos podendo constatar.