Novo regime para a educação especial: as dúvidas que subsistem

educacion%20inclusiva%20correcta[1]Apesar do período alargado de discussão pública do novo regime da educação especial, a que o ME prefere agora chamar regime de inclusão, a verdade é que ele não permitiu a dissipação da maioria das dúvidas e inquietações de quem lida diariamente, e de forma directa, com esta problemática. Estou a referir-me aos professores em geral e mais especificamente aos da educação especial, bem como aos psicólogos e terapeutas que acompanham os alunos com necessidades educativas especiais.

Pois se da parte do ministério é fácil decretar a inclusão, do lado das escolas conhecem-se as múltiplas situações em que ela, ou simplesmente não é viável, ou implicaria um conjunto de recursos que não estão disponíveis, nem há indícios de que venham a estar. Pois sob a capa da inclusão poderemos vir a assistir a breve trecho, não a um aumento de recursos materiais e humanos, mas à sua diminuição. Se os alunos estão integrados nas respectivas turmas, felizes e contentes, para que são necessários mais apoios?…

A psicóloga escolar Adriana Campos exprimiu, em artigo recente do Educare, algumas das fundadas e persistentes dúvidas que o quadro legal em preparação suscita entre os especialistas no terreno. Pois os de gabinete já se percebeu que estão, na sua maioria, de corpo e alma com as ideias reformistas do secretário de Estado João Costa.

No quarto parágrafo desta proposta é referido que “Procura-se, deste modo, garantir que o Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória seja atingido por todos, (…)”. Era excelente que esta premissa fosse concretizável, mas quem trabalha na escola sabe que há muitas crianças para quem estas metas são inatingíveis, porque, e contrariamente ao que é dito no parágrafo anterior, conhecer as barreiras não nos permite eliminá-las todas nem garantir o acesso ao currículo e às aprendizagens por parte de todos os alunos.

No artigo 3.º, a inclusão é definida como “o direito de todas as crianças e alunos no acesso e participação, de modo pleno e efetivo, aos mesmos contextos educativos”. Na linha deste princípio, extinguem-se as unidades especializadas e a medida “Currículo Específico Individual” (CEI) e as escolas são obrigadas a incluir nas salas de aula, durante mais tempo, crianças com graves dificuldades de acesso ao currículo. Convém sublinhar que os alunos que até ao momento integram as unidades especializadas e as salas CEI são crianças com limitações muitíssimo acentuadas e em relação às quais a escola já tinha implementado, sem o sucesso necessário, várias estratégias, no sentido de as ajudar a ultrapassar as barreiras que condicionavam severamente a sua evolução académica, antes de optarem por essas medidas. Pensando em alunos concretos que avaliei e acompanhei – crianças que não adquiriram o mecanismo da leitura e da escrita; que não conseguem registar a informação do quadro, mesmo com o constante incentivo do professor; alunos para quem as aulas de Português, Ciências, História e outras disciplinas apresentam uma linguagem indecifrável; alunos com dificuldade de regulação emocional, que emitem ruídos de forma incontrolável e constante – colocá-los numa sala de aulas será incluí-los ou torturá-los? Será ajudá-los a sentirem-se mais semelhantes aos outros ou ainda mais diferentes, na medida em que serão permanentemente confrontados com a incapacidade de acompanharem as abordagens que estão a ser feitas em sala de aula? Os mais otimistas poderão argumentar que estes meninos vão ter na sala um professor da educação especial a orientar as suas tarefas. Será que vão? Haverá recursos humanos para acompanhar devidamente estes meninos, cuja autonomia é reduzidíssima?

Adriana Campos aponta casos recentes de alunos com um perfil semelhante aos que descreve e que foram integrados nas actividades das turmas, para referir que não só não progrediram academicamente como se mostraram mais perturbados emocionalmente e com maiores dificuldades de integração escolar. E deixa uma sugestão pertinente:

Se as unidades especializadas e as salas CEI são vistas como guetos, não seria de pensar em alternativas formativas diferenciadas, com uma vertente mais técnica (aprender fazendo), para estas crianças que, efetivamente, não conseguem aceder ao currículo? Colocá-las em salas de aula, verdadeiros universos paralelos, será uma real estratégia de inclusão?

6 thoughts on “Novo regime para a educação especial: as dúvidas que subsistem

  1. No post está tudo dito, com clareza e sem subterfúgios. Acrescento que nos chegam diariamente relatos (“assustadores”) do ambiente que se vive nas salas de aula onde a “experiência” já está a ser “implementada”. Resumindo, em duas palavras, o que ouvimos : as crianças portadoras de problemáticas agudas, obviamente nada aprendem ; o caos que se instala, mercê dos naturais comportamentos “disruptivos” daquelas crianças , faz com que os restantes alunos pura e simplesmente fiquem impedidos de aprender ; os professores, esses, ficam “loucos” com tamanha agitação, não conseguindo dar uma aula digna desse nome. Aconselhei alguns docentes – sempre que a situação se torne insustentável – a suspenderem a atividade, justificando no sumário as razões mais que atendíveis. Quem nos acode?

    Gostar

  2. Verifico – com apreensão – que as questões acima afloradas se transformaram em assunto tabu, silenciadas, apenas comentadas em surdina, não abertamente . Por que será? Aqueles que legitimamente deveriam denunciá-las têm medo de ferir susceptibilidades?

    Gostar

  3. Façam uma ronda pelas CERCIS, conversem com os técnicos e com os poucos professores do Ministério da Educação que ainda querem estar em mobilidade, e vejam a diferença! Começa logo por ser estranho que o Ministério da Educação defina dois calendários escolares para os seus docentes: o do Ensino Especial na Escola Regular com os 3 períodos e respetivas interrupções; o do Ensino Especial nas cooperativas com dois semestres, a iniciar-se a 1 de setembro, sem interrupções letivas e a acabar em 31 de julho. Onde é que um aluno, por exemplo, com Transtorno do Espectro do Autismo (atenção que o Síndrome de Asperger já não existe) adquire mais autonomia e consequentes competências? Na Escola Regular, com várias interrupções letivas ao longo do ano, acabando o ano em junho, ficando 3 meses longe de tudo, sabe-se lá em que condições, porque não há ATLs para eles, ou o da CERCI que está em atividade contínua até fim de julho (geralmente na praia onde todo o trabalho é posto à prova), indo «somente» em agosto para casa? A maior parte das pessoas que tomam decisões nesta área, nunca trabalharam com eles, e fogem destes alunos como o Diabo da Cruz.

    Gostar

    • É justamente o que mais me preocupa: os decisores nesta área – e noutras! – não considerarem quem está no terreno e conhece a realidade. Quando saem da zona de conforto é para doutrinarem e arregimentarem adeptos, nunca para ouvir os profissionais, tratando-os como parceiros e envolvendo-os na definição de políticas para o sector.

      Gostar

      • E o país investiu tanto nesses centros! Queriam poupar e agora gastam ainda mais nas Escolas e nas CERCIS! Sem contar com os Centros de Recursos para a Inclusão (CRIS)! Os terapeutas vão uma vez por semana às escolas, a intervenção é de meia hora, geralmente têm de ir procurar os alunos aos recreios, e quando os encontram faltam 5 minutos para o fim, Mas no Final do Ano Letivo a estatística oficial diz que foi tudo cumprido!

        Gostar

Comentar

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.