O financiamento das creches

041700a[1]Uma criança pobre que frequente a creche da Cáritas de Lisboa paga quase o triplo do que pagaria se frequentasse uma das creches da Cáritas de Coimbra, ou de muitas outras das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) espalhadas pelo país. Mas a creche da Cáritas de Lisboa não é um caso isolado. A existência de enormes disparidades nas mensalidades exigidas aos utentes dos diversos equipamentos das IPSS, incluindo creches e lares de idosos, é uma das marcas da chamada rede solidária. E, no entanto, todas as instituições que a compõem e têm acordos de cooperação com a Segurança Social, cerca de 4500, recebem o mesmo subsídio por cada utente dos seus estabelecimentos.

José António Cerejo revela, no Público, uma realidade mal conhecida: os financiamentos indiferenciados, por utente, que a Segurança Social atribui a cada IPSS somam-se ao que é cobrado a cada utente pela utilização dos serviços. E o valor esta última parcela é deixada ao critério de cada instituição. Isto tanto pode permitir aquilo que é desejável nestas situações, que é as famílias de menores rendimentos pagarem menos, como pode tornar a prestação de serviços um negócio economicamente apetecível. E embora as IPSS não possam ter fins lucrativos, a verdade é que a possibilidade de gerir e acumular grandes fluxos financeiros tem atraído, à direcção de algumas instituições, pessoas que nem sempre são as mais altruístas e solidárias.

Na verdade tudo isto se baseia num princípio errado, que é o Estado entregar dinheiro público a instituições privadas, ainda que para fins de solidariedade social, e não controlar a forma como ele é gasto, nem definir regras que imponham o atendimento prioritário aos mais carenciados. No limite, poderemos ter IPSS “de luxo”, que atraem utentes mais endinheirados, enquanto outras, recebendo sobretudo pessoas carenciadas, podem ver-se em dificuldades, mesmo com a ajuda estatal, para assegurar serviços com um mínimo de qualidade.

Existem várias soluções possíveis para este problema, que é evidente na disparidade entre as mensalidades e outros pagamentos cobrados pelas diferentes instituições, mas talvez a mais viável seja a que a secretária de Estado que tutela o sector defendia antes de entrar no governo: um sistema de comparticipações estatais diferenciado em função do que é efectivamente cobrado aos utentes. Desta forma, seria possível discriminar positivamente as instituições que privilegiam efectivamente as famílias de menores recursos.

Mas por detrás do problema essencialmente técnico e financeiro, há uma questão política, que Mariana Mortágua enuncia com a clareza e frontalidade que lhe são habituais:

O problema não se resolve obrigando estas creches a acolherem apenas as crianças mais pobres. Isso geraria guetos. Mas também não é justo que as IPSS possam lucrar com um serviço que é, em última instância, pago pelo Estado, cobrando valores diferenciados aos pais. A resposta só pode mesmo ser, neste caso, a construção de uma rede pública de creches, gerida diretamente pelo Estado.

Mais uma vez, há um lugar para o terceiro setor, em particular as IPSS, nas respostas que a sociedades deve encontrar para diferentes necessidades sociais. Mas esse lugar não deve, em caso algum, ser o da substituição do Estado, ou da sua desresponsabilização na prestação de serviços públicos universais e igualmente acessíveis a todos. Ainda para mais quando, tanto a transferência de responsabilidades como a sua gestão pelas IPSS se faz sem clareza ou escrutínio.

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