Assédio na academia

Foram quatro horas e meia de conversa. Mulheres de vários países se reuniram numa videoconferência e quebraram anos de silêncio. Esta é a primeira vez que as pesquisadoras, reunidas em um coletivo internacional, relatam publicamente violências e assédios que teriam sofrido de Boaventura de Sousa Santos. Até agora, elas vinham mantendo suas identidades e histórias em sigilo. 

Sete integrantes do coletivo, formado por 14 mulheres ao todo, aceitaram participar da entrevista exclusiva com a Agência Pública: Carla Paiva, Eva García Chueca, Gabriela Rocha, Aline Mendonça, Mariana Cabello, Élida Lauris e Sara Araújo. Seus relatos envolvem denúncias de assédio sexual e moral, abuso de poder, violência verbal e extrativismo intelectual – ou seja, uso do trabalho das pesquisadoras sem reconhecimento de autoria nem remuneração. Os casos relatados teriam ocorrido quando elas estudavam ou trabalhavam no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que foi dirigido pelo professor e sociólogo de renome internacional por muitos anos. 

A extensa notícia, recheada de depoimentos das vítimas, é elucidativa. Nenhum processo disciplinar ou decisão judicial condena Boaventura de Sousa Santos, o professor-estrela do CES, ligado à Universidade de Coimbra, pelas acusações recorrentes de assédio sexual e moral, abuso de poder, violência verbal e extrativismo intelectual. Mas é impossível não perceber, pela quantidade e consistência dos testemunhos, o ambiente tóxico e degradante vivido, durante anos a fio, no interior da capelinha académica dirigida pelo “professor-estrela” da Sociologia coimbrã. Tal como são notórias as cumplicidades, quer pela conivência quer pelo silêncio, com os abusos de que, anos a fio, se falava à boca pequena.

Está praticamente tudo dito na peça da Agência Pública, cuja leitura integral se recomenda. Pela minha parte, acrescento apenas duas curtas notas.

A primeira para realçar que o assédio e o abuso sobre mulheres não é comportamento exclusivo de homens de direita, conservadores, machistas e misóginos: podem surgir de onde menos se espera, até de um sociólogo de quem, tanto pela formação académica como pelo posicionamento ideológico à de esquerda, se esperaria outra consciência e comportamento. Também não vale, como o próprio Boaventura tentou fazer, reduzir a uma questão geracional: em todas as idades, tal como em todos os grupos étnicos e sociais, géneros e orientações sexuais existem pessoas bem e mal formadas. O que a ascensão a posições de influência e poder pode fazer é ajudar a germinar a ruindade que já por lá existia.

Segunda nota para saudar a condenação generalizada, por parte da direita portuguesa, de uma figura de peso da academia portuguesa e internacional que sempre detestaram. É importante, ainda assim, ver gente que sempre desvalorizou acusações de assédio, abuso e mesmo violência sexual, ganhar consciência de que não é não, juntando as suas vozes às e aos feministas que sempre defenderam, sem reservas nem subterfúgios, os direitos das mulheres.

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