A direita identitária

Pedro Passos Coelho apresentou, esta segunda-feira, o livro “Identidade e Família”, uma obra que reúne 22 contributos da direita mais conservadora, que pretende alertar para a “destruição da família” tradicional.

Entre os contributos contam-se Bagão Félix, um dos organizadores, César das Neves, Jaime Nogueira Pinto, Ribeiro e Castro e Manuel Monteiro, e que contou com a bênção do cardeal Manuel Clemente, assim como outros membro da Igreja.

“A família”, referiu o ex-primeiro-ministro, “nem sempre é considerada nas políticas públicas e muitas vezes é desconsiderada pelas políticas públicas. Isso não é bom”.

O regresso à ribalta de Passos Coelho, apadrinhando uma iniciativa da direita mais conservadora, levantou acesa polémica e tem um significado estratégico óbvio: mostra que há pontos de contacto entre um PSD que, apesar do rótulo social-democrata, sempre foi um partido de matriz “conservadora nos costumes” e o projecto assumidamente reaccionário do Chega.

Outras leituras se podem fazer desta polémica que a comunicação social e as redes sociais se encarregarão de continuar a amplificar durante a semana. Na verdade, as questões identitárias são úteis, à esquerda e à direita, para desviar o foco das atenções para outras matérias. E o certo é que a direita – embora a maioria absoluta formada por AD+Chega não se mostre, por enquanto, funcional – ganhou as eleições prometendo, no imediato, descidas de impostos, crescimento económico, melhoria dos serviços públicos e valorização das carreiras dos servidores do Estado. Mudanças de logotipo, polemizadas na semana passada, e questões de “identidade da família” não estavam no programa. Porque estamos então a discuti-las, em vez de indagarmos quando começarão a ser cumpridas as promessas eleitorais?

O truque já tinha sido amplamente usado no tempo de José Sócrates: com políticas económicas e sociais tipicamente de direita, o PS recorreu às questões identitárias para se tentar afirmar como um partido de esquerda. Agora é a direita conservadora que, do alto dos seus preconceitos, pretende robustecer-se em torno de valores que toma como sólidos, mas que na verdade estão completamente caducos. A única tradição, aqui, é a eterna hipocrisia da direita, que sempre gostou de alardear públicas virtudes enquanto esconde os vícios privados.

Algum conhecimento de demografia histórica ajuda. Por exemplo, o conceito que agora nos querem vender de família tradicional – pai, mãe, filhos – está longe de ser perene e universal. Sempre houve famílias com e sem filhos, celibatários, famílias baseadas noutros graus de parentesco – por exemplo, irmãos coabitando na casa que pertencera aos pais – pessoas a viver em comunidade sem laços de parentesco – mosteiros e conventos são os exemplos mais conhecidos das sociedades antigas, mas o coliving é um conceito bem moderno que nem sempre é uma escolha individual: muitas vezes é usado, hoje em dia, para romantizar as dificuldades no acesso à habitação.

Quanto aos filhos, não é só hoje que, por via de separações e divórcios, abundam as famílias monoparentais. Na Idade Média e no Antigo Regime, eram uma situação muito comum, devido sobretudo à mortalidade elevada, que abrangia todas as faixas etárias. Devido às mulheres que morriam nos partos frequentes e aos homens que emigravam, embarcavam, iam para a guerra. Crianças criadas por tios, avós, padrinhos ou irmãos mais velhos eram outra realidade muito frequente, e não apenas entre as camadas populares, onde a pobreza extrema e as famílias numerosas impuseram essas soluções até épocas muito recentes. Entre a nobreza, era frequente a demonstração de confiança e lealdade que consistia em confiar um filho a um vassalo ou dependente para que este o criasse. Até o fundador da Pátria, D. Afonso Henriques, órfão de pai por volta dos três anos, terá sido “dado a criar” ao nobre Egas Moniz, como muitos portugueses puderam aprender na escola primária!

2 thoughts on “A direita identitária

  1. “Porque estamos então a discuti-las, em vez de indagarmos quando começarão a ser cumpridas as promessas eleitorais?”

    Calhando, não era mal pensado.

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