Pensamento do dia

Hoje pessoas que nunca leram um livro sobre um assunto acham a sua opinião equivalente à de um cientista que andou a vida a estudá-lo.

Renato Godinho

Jornada de luta

Embora os professores prefiram, geralmente, travar as suas próprias lutas laborais a convergir em lutas comuns da administração pública, a manifestação de hoje em Lisboa, organizada pela Frente Comum – sindicatos da função pública afectos à CGTP – também está aberta à participação de professores. Os sindicatos da Fenprof estão entre os organizadores.

Para possibilitar a comparência de todos os que queiram aderir, está também convocada greve em todos os sectores, Educação incluída.

Videojogos: a cultura da violência

Portugal acordou há dias em choque com a notícia de um jovem português de 17 anos que mandava executar crimes e homicídios pela internet a uma rede de seguidores no Brasil e que planeava outro homicídio para breve. O mesmo país parece não estar ainda suficientemente indignado com as mais de 4 horas por dia que os seus adolescentes passam nos smartphones e redes sociais, em sites pornográficos ou em videojogos, alguns muito violentos, onde executar ou decapitar parecem atos tão neutros como beber água. De outro modo, provavelmente, os pais deixariam de oferecer smartphones aos filhos antes dos 13 anos (tal como fez Steve Jobs, o génio da Apple), exigiriam do Governo a proibição do seu uso nas escolas e censurariam tanto o consumo como a comercialização de videojogos violentos. E será que estariam a ser radicais ou apenas a tentar prevenir problemas de saúde mental e de desenvolvimento cognitivo dos seus filhos?

A excelente peça de Carla Aguiar analisa os problemas decorrentes da exposição precoce de crianças e adolescentes aos telemóveis e à internet, focando-se especialmente nos riscos dos jogos online que promovem a violência. É verdade que milhões de jovens em todo o mundo jogam, regular ou ocasionalmente, jogos onde a violência explícita está presente, sem que se tornem perigosos psicopatas ou serial killers. Sabendo-se que o entretenimento online foi concebido para criar comportamentos aditivos e que os jogos violentos surgiram no contexto do treino militar, para familiarizar os soldados com o conceito de matar sem hesitações nem remorsos, percebemos que, para mentes imaturas ou perturbadas, os jogos violentos podem ser extremamente prejudiciais.

Além do risco de desenvolver comportamentos anti-sociais – isolamento, falta de empatia, dificuldade em regular gerir emoções e frustrações, obter prazer do sofrimento alheio – os jogadores online ficam também expostos, através dos chats associados às plataformas de jogos, às más influências e manipulações de terceiros.

Combater a perniciosa e destrutiva influência dos jogos digitais entre os mais novos é à partida uma responsabilidade dos pais, da qual o resto da sociedade, e em particular a escola, não se pode alhear. Pelo que a questão da admissibilidade do uso de telemóveis na infância e pré-adolescência se vai colocando com cada vez mais acuidade. Começa a perceber-se que o uso pedagógico do telemóvel, pelo menos nas idades mais tenras, nunca será mais do que residual. E repentinamente, a “escola digital” ficou fora de moda: as escolas de referência são, agora, as que pura e simplesmente baniram o uso do telemóvel, colocando os alunos a interagir uns com os outros e com os adultos responsáveis em vez de andarem agarrados aos aparelhos.

Entre nós, sobretudo em relação à escola pública, coloca-se uma questão cada vez mais incontornável: devem ser decretadas normas mais restritivas em relação ao uso do telemóvel nos espaços escolares ou continuar a confiar, como até aqui, no “bom senso” e na “autonomia das escolas” para definirem localmente as regras mais adequadas? A experiência diz-nos que, quando há claras vantagens em uniformizar procedimentos, não o fazer irá apenas aprofundar as desigualdades educativas. Por cá, os colégios de elite já parecem ter percebido há muito, nesta matéria, o que melhor a fazer:

Começa a desenhar-se uma tendência europeia para banir os smartphones das escolas. O Reino Unido e a França anunciaram essa decisão, o mesmo acontecendo em algumas regiões de Espanha, tendo em conta as evidências de problemas de concentração, insucesso escolar, menos interação social e mais ansiedade associada ao uso frequente. Em Portugal, o Ministério da Educação tem preferido deixar o assunto ao critério das escolas, o que não garante condições de equidade aos alunos onde é possível estar conectado ou não. E o que a experiência mostra nas escolas proativas é que os alunos estão em clara vantagem, “com melhor foco e bem-estar”, atesta a co-fundadora da Mirabilis, Matilde Sobral.

Em Portugal, a decisão foi tomada essencialmente em colégios privados de elite como a Escola Alemã, que proíbe os telemóveis há cerca de 10 anos, o mesmo acontecendo com os colégios Mira Rio e Planalto. O Colégio São João de Brito é outro caso onde a Mirabilis já fez ações de sensibilização com pais e professores e vai agora dirigir-se aos alunos. Quanto a escolas públicas, há pelo menos duas, em Lousada e em Almeirim, que foram pela mesma opção.

Sono a menos

Menos horas de sono do que o recomendável parece ser o preço a pagar pela popularidade nas redes sociais. São sobretudo as raparigas que investem mais na sua rede de seguidores virtuais que se ressentem em horas de sono perdidas. Será não só o tempo de selecionar e preparar os posts mas também a ansiedade em torno das visualizações e das reacções obtidas.

O que o estudo agora divulgado parece indicar é que não é tanto o número elevado de seguidores que causa pressão psicológica sobre as adolescentes, mas sim a relação que com eles procuram estabelecer: a popularidade nas redes sociais é o caminho que permite alcançar o estatuto de influenciador digital, que parece ser objectivo de um número significativo de raparigas, quer por vontade própria quer por influência de pressões e expectativas sociais.

Perante esta realidade, vão-se sucedendo os apelos ao uso regrado das redes sociais por adolescentes, evitando exercícios de auto-exposição fútil e por vezes contraproducente, bem como um maior controlo por parte dos pais desta actividade. Apelos que caem muitas vezes em saco roto, o que leva os mais radicais a defender, como também já se tem lido e ouvido, ao aumento da idade mínima de admissão nas redes sociais…

Estudo sueco e australiano cruzou dados de alunos nas escolas, projeção nas redes sociais e horas de sono. E concluiu que ser-se fixe na escola pode ser afinal mau para o descanso, em particular no caso das meninas

Um adolescente mais ‘cool’ e popular na escola pode dormir menos meia hora de sono por noite em tempo de escola do que em comparação com todos os outros que registam menos interações nas redes sociais. Contas feitas, ao fim de cinco dias de aulas, são duas horas e meia a menos de descanso.

Mão pesada para agressores

O Governo decidiu esta quinta-feira em Conselho de Ministros reforçar o quadro criminal de agressões e ofensas contra vários grupos de profissionais públicos, nomeadamente forças e serviços de segurança, guardas prisionais, profissionais de saúde e professores e auxiliares.

O anúncio foi efetuado em conferência de imprensa após a reunião do Conselho de Ministros, com o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, a salientar que estes profissionais “desempenham funções fundamentais e é fundamental reforçar a sua autoridade”.

Entre as alterações que estão previstas pelo Governo estão o “aumento da moldura penal contra agressores”, a “isenção de custas judiciais” para os profissionais públicos ofendidos e a “classificação como crime público” para os casos nestes setores profissionais em que as agressões ainda não estão classificadas dessa forma.

Enunciada em linhas ainda muito gerais, a iniciativa do Governo vai claramente no sentido certo: profissionais em exercício de funções públicas, sejam polícias, médicos, enfermeiros ou professores, têm o pleno direito de ser respeitados na sua pessoa e nas suas funções. É inadmissível algum sentimento de impunidade que se instalou em alguns sectores da sociedade, ao ponto de haver quem ache natural insultar, ameaçar ou até agredir um profissional quando alguma coisa não corre a seu contento.

A tipificação das agressões e ofensas aos funcionários, decorrentes do exercício das suas funções, como crime público é defendida há muitos anos: será desta que irá, finalmente, concretizar-se? É uma medida relevante, tal como a isenção de custas judiciais no recurso aos tribunais. Mas melhor ainda seria que o Estado, dando o exemplo do que deve ser o dever de qualquer empregador, assumisse a defesa judicial, até às últimas instâncias, de quem é ofendido ou maltratado no exercício dos seus deveres profissionais.

No caso dos serviços jurídicos do ministério da Educação, agora MECI, seria uma pequena revolução: deixarem de se dedicar a perseguir disciplinar e judicialmente os professores, tarefa em que parecem ter-se especializado nos últimos anos, para defender os direitos e a dignidade profissional dos profissionais da Educação.

1.º de Maio de 1974

Completam-se hoje 50 anos após o primeiro Dia do Trabalhador celebrado em democracia. Embora não completamente esquecido no tempo da ditadura, era vivido pela generalidade da população como um dia normal de trabalho. O Estado Novo proibia expressamente as manifestações, a não ser as supostamente “espontâneas” de apoio ao regime e ao ditador. As outras eram geralmente dispersadas a cassetete, embora se possa dizer que a ditadura também celebrava, à sua maneira, a festa proibida: umas semanas antes do 1.º de Maio, a PIDE ia prendendo, para interrogatórios e investigações, reais ou supostos agitadores que pudessem desencadear actos de protesto no Dia do Trabalhador.

Comemorando a liberdade recém-conquistada com a Revolução dos Cravos, o povo saiu à rua em Lisboa e noutras cidades do país. Embora não haja números rigorosos, calcula-se que mais de um milhão de pessoas terá participado nas concentrações e desfiles do 1.º de Maio de 1974, e que faz desse dia, muito provavelmente, o da maior manifestação de sempre realizada em Portugal. Sem tempo ainda para se afirmarem as diferenças entre partidos e tendências sindicais que haveriam de marcar o PREC e o período pós-revolucionário, o que ressalta da festa dos trabalhadores de 1974 é, a par da imensa alegria de um povo que finalmente se sentia livre, o espírito de unidade: todos rejeitavam a ditadura, a guerra, a miséria e olhavam com esperança e optimismo o futuro a construir.

Se o número de pessoas que saíram à rua se constitui como algo inédito e expressivo, este dia foi mais do que isso. Tantas vezes chamado “Primeiro 1º de Maio” – inaugural na sua celebração em liberdade, depois de 48 anos de ditadura – foi uma coisa nunca vista. João Abel Manta desenha este acontecimento para a primeira página do Diário de Lisboa: ao centro da imagem um casal jovem, com uma criança aos ombros, sorridentes, de punhos erguidos. Sem medo, felizes, vitoriosos. Festa e luta.

As ruas foram, assim, tomadas pelos corpos e pelas vozes, por todos aqueles que se constituíam, ou estavam em processo de se constituir, como sujeitos políticos. Como na canção de Zeca Afonso: O Povo é quem mais ordena. Ou ainda como titularam vários do jornais coevos que mostravam as manifestações desse Maio, remetendo para a palavra de ordem que se tornou tão central: O Povo Unido jamais será vencido. Palavra de ordem que se ouve, por exemplo, na reportagem da RTP sobre as manifestações em vários locais do país, com destaque para Lisboa.

A rua deixou de ser interdita – porque o era para os que não apoiavam ou eram arregimentados e enquadrados pela ditadura. Interdita, é certo, a rua nunca deixou de ser um território de confronto, no qual se materializava o combate desigual entre o aparato policial e repressivo do Estado e os corpos dos opositores. Mas depois da revolução de Abril, as manifestações já não podiam ser proibidas. O espaço foi reconquistado. É, assim, político e politizado.

As pessoas que saíram à rua nesse Maio trazem as suas reivindicações para o espaço público, tornam-se visíveis, audíveis e presentes. Flutuam bandeiras, os braços seguram faixas e cartazes. E há cravos. Há uma pluralidade de mensagens escritas nas faixas e cartazes, que se fazem ouvir nas entrevistas que foram feitas, que se recordam nas memórias de quem viveu o momento. Até mesmo, como se pode ver no filme As Armas e o Povo (1975), um cartaz no qual se lê: “A poesia está na rua”. São as reivindicações do mundo do trabalho, mas são muito mais do que isso. Deitam fora o velho, o bafiento, a ditadura e a guerra. Para dar lugar ao novo. Para dar lugar à construção do novo. A todas as possibilidades do que poderia ser esse novo. Este momento pode, assim, ser visto como uma irrupção popular que anuncia e materializa a nova dinâmica política. Nos meses seguintes, vivia-se em Portugal o PREC (Período Revolucionário em Curso).

Continuar a ler…

Família tradicional

Publico, com a devida vénia, o magnífico cartoon de Vasco Gargalo a propósito da mais recente tentativa de ressuscitar a imagem daquilo que passa por ser a “família tradicional”. Uma ideia retrógrada, preconceituosa e sem correspondência com a realidade. Na verdade, e como já se explicou por aqui, este modelo de família supostamente natural e intemporal sempre coexistiu com outras formas de organização social e familiar. Nunca foi o único, nem sequer, na maior parte da história da humanidade, o modelo dominante.

Há uma notória incapacidade da direita portuguesa para protagonizar um projecto de mudança e progresso económico e social do país. Fazer diferente, para melhor, do socialismo desinspirado que tivemos nos últimos anos. Quando, por um conjunto de circunstâncias favoráveis, e sem ter feito grande coisa para isso, o poder lhe cai ao colo, a direita mostra-se incapaz de olhar para o futuro, insistindo em receitas falhadas e em encontrar inspiração revisitando um passado caduco a que ninguém, verdadeiramente – nem eles próprios! – desejaria voltar. Quando, em matérias como a interrupção voluntária da gravidez, o morto-vivo CDS e a ala mais conservadora do PSD se deixam ultrapassar até pelo Chega, está quase tudo dito sobre a credibilidade da nova AD, que nunca trouxe para a campanha eleitoral a agenda conservadora nos costumes que agora, com pezinhos de lã, tenta impor ao país…

Pensamento do dia

Se um macaco acumulasse mais bananas do que poderia comer, enquanto a maioria dos outros macacos morriam de fome, os cientistas estudariam esse macaco para descobrir que diabo haveria de errado com ele. Quando os humanos fazem isso, pomo-los na capa da Forbes.

Nathalie Robin Justice Gravel

Ricos cada vez mais ricos e cada vez menos mérito na obtenção da riqueza: os jovens milionários e bilionários herdam as fortunas dos pais e já nem precisam de fingir que estudaram e trabalharam muito para conseguirem tudo o que têm; basta-lhes viver a vida glamourosa e despreocupada que está na moda ostentar nas redes sociais. Conferir aqui:

Só há herdeiros, e nenhum génio precoce, entre os jovens bilionários da Forbes

A direita identitária

Pedro Passos Coelho apresentou, esta segunda-feira, o livro “Identidade e Família”, uma obra que reúne 22 contributos da direita mais conservadora, que pretende alertar para a “destruição da família” tradicional.

Entre os contributos contam-se Bagão Félix, um dos organizadores, César das Neves, Jaime Nogueira Pinto, Ribeiro e Castro e Manuel Monteiro, e que contou com a bênção do cardeal Manuel Clemente, assim como outros membro da Igreja.

“A família”, referiu o ex-primeiro-ministro, “nem sempre é considerada nas políticas públicas e muitas vezes é desconsiderada pelas políticas públicas. Isso não é bom”.

O regresso à ribalta de Passos Coelho, apadrinhando uma iniciativa da direita mais conservadora, levantou acesa polémica e tem um significado estratégico óbvio: mostra que há pontos de contacto entre um PSD que, apesar do rótulo social-democrata, sempre foi um partido de matriz “conservadora nos costumes” e o projecto assumidamente reaccionário do Chega.

Outras leituras se podem fazer desta polémica que a comunicação social e as redes sociais se encarregarão de continuar a amplificar durante a semana. Na verdade, as questões identitárias são úteis, à esquerda e à direita, para desviar o foco das atenções para outras matérias. E o certo é que a direita – embora a maioria absoluta formada por AD+Chega não se mostre, por enquanto, funcional – ganhou as eleições prometendo, no imediato, descidas de impostos, crescimento económico, melhoria dos serviços públicos e valorização das carreiras dos servidores do Estado. Mudanças de logotipo, polemizadas na semana passada, e questões de “identidade da família” não estavam no programa. Porque estamos então a discuti-las, em vez de indagarmos quando começarão a ser cumpridas as promessas eleitorais?

O truque já tinha sido amplamente usado no tempo de José Sócrates: com políticas económicas e sociais tipicamente de direita, o PS recorreu às questões identitárias para se tentar afirmar como um partido de esquerda. Agora é a direita conservadora que, do alto dos seus preconceitos, pretende robustecer-se em torno de valores que toma como sólidos, mas que na verdade estão completamente caducos. A única tradição, aqui, é a eterna hipocrisia da direita, que sempre gostou de alardear públicas virtudes enquanto esconde os vícios privados.

Algum conhecimento de demografia histórica ajuda. Por exemplo, o conceito que agora nos querem vender de família tradicional – pai, mãe, filhos – está longe de ser perene e universal. Sempre houve famílias com e sem filhos, celibatários, famílias baseadas noutros graus de parentesco – por exemplo, irmãos coabitando na casa que pertencera aos pais – pessoas a viver em comunidade sem laços de parentesco – mosteiros e conventos são os exemplos mais conhecidos das sociedades antigas, mas o coliving é um conceito bem moderno que nem sempre é uma escolha individual: muitas vezes é usado, hoje em dia, para romantizar as dificuldades no acesso à habitação.

Quanto aos filhos, não é só hoje que, por via de separações e divórcios, abundam as famílias monoparentais. Na Idade Média e no Antigo Regime, eram uma situação muito comum, devido sobretudo à mortalidade elevada, que abrangia todas as faixas etárias. Devido às mulheres que morriam nos partos frequentes e aos homens que emigravam, embarcavam, iam para a guerra. Crianças criadas por tios, avós, padrinhos ou irmãos mais velhos eram outra realidade muito frequente, e não apenas entre as camadas populares, onde a pobreza extrema e as famílias numerosas impuseram essas soluções até épocas muito recentes. Entre a nobreza, era frequente a demonstração de confiança e lealdade que consistia em confiar um filho a um vassalo ou dependente para que este o criasse. Até o fundador da Pátria, D. Afonso Henriques, órfão de pai por volta dos três anos, terá sido “dado a criar” ao nobre Egas Moniz, como muitos portugueses puderam aprender na escola primária!

O regresso do serviço militar

Países na Europa começam a ponderar ressurgimento do serviço militar obrigatório

A medida está a ser ponderada e a ganhar mais defensores devido à invasão da Rússia à Ucrânia e o alargamento da NATO.

Há um crescente sentimento belicista na Europa, que a guerra na Ucrânia veio exacerbar e que está a ser habilmente aproveitado por políticos populistas e lobistas da indústria do armamento para justificar um forte aumento da despesa militar à custa do cada vez mais depauperado Estado Social. Quando desaparece a Memória sobre a última grande guerra mundial – os raros sobreviventes ainda vivos terão hoje mais de 80 anos – e à História não é dado o devido valor, vai fazendo o seu caminho uma ilusão perigosa: a de que é viável travar e vencer um confronto directo entre potências nucleares.

Estando já identificado o inimigo comum – a Rússia de Putin! – um vector essencial para instilar o medo e a insegurança que justifiquem o apelo às armas é a defesa do serviço militar obrigatório (SMO), que alguns países europeus começam já a reintroduzir . Quase sempre feita, curiosamente, por quem não está em idade ou em condições para ser mobilizado. Querem guerra, sim, mas contam à partida que sejam outros a matar e a morrer. Na base deste regresso ao passado, conjugam-se os argumentos belicistas e nacionalistas de velhas e novas direitas com uma certa romantização que, à esquerda, se tem feito do SMO: seria a base de um exército democrático, formado pelos cidadãos em armas, filhos do povo que, como tal, iriam sempre defender o povo do seu próprio país e nunca virar-se contra ele. Comovedor, mas que infelizmente sem correspondência com a realidade histórica. E começa logo por aqui: nos exércitos, não há democracia. Prevalecem a obediência, a disciplina, a hierarquia. As ordens, boas ou más, certas ou erradas, vêm de cima e cumprem-se sem questionar.

Na verdade, a intensificação dos conflitos militares e do poder dos grandes exércitos nasce a par da universalização do dever militar. Napoleão Bonaparte, o grande percursor da guerra moderna, recrutou, com base no SMO, mais de dois milhões de soldados para as campanhas militares que puseram a Europa, desde os Urais à Península Ibérica, a ferro e fogo. Tal como o fizeram mais tarde as grandes potências europeias que travaram a Primeira Guerra Mundial. O SMO permitiu aos altos comandos políticos e militares dispor de um quase inesgotável fornecimento de carne para canhão, necessário ao prolongamento de uma carnificina que se prolongou por quatro longos anos. E da qual os países envolvidos não conseguiram retirar os ensinamentos necessários para evitar que, duas décadas volvidas, ditadores sanguinários recorressem ao recrutamento em massa para desencadear um novo conflito.

Em Portugal, o SMO não impediu os generais que se revoltaram contra a Primeira República instalassem em 1926 a ditadura militar nem que esta se tivesse convertido no Estado Novo de Salazar, tendo na fidelidade das Forças Armadas um dos seus principais apoios. É certo que, com o 25 de Abril, estas se redimiram do seu alinhamento com a ditadura, mas ainda assim há que notar que não foram os soldados a cumprir SMO que fizeram a revolução: ela foi um movimento de militares profissionais, a maioria oficiais de baixa patente, que os soldados que comandavam, é certo, seguiram lealmente.

Finalmente, a obrigatoriedade do SMO tem estado longe, na prática, de ser de facto um dever universal: o “ficar livre da tropa” é tão antigo como o dever de a cumprir: a par de reais ou alegadas enfermidades ou deficiências físicas que dispensavam os menos aptos, os cidadãos mais ricos e influentes sempre encontraram formas de evitar que os seus filhos fossem para a guerra. Vemos isso hoje, com os jovens russos e ucranianos exilados em países ocidentais enquanto os seus compatriotas são forçados a arriscar a vida nas trincheiras e nos campos de batalha. Com o filho de Netanyahu, a viver confortavelmente em Miami enquanto os jovens israelitas são convocados para o massacre de palestinianos. Vimo-lo no passado também entre nós, e aí está a figura do mais alto magistrado da nação portuguesa a fazer-nos questionar porque é que Marcelo, filho do ministro do Ultramar, Baltazar Rebelo de Sousa, nunca foi chamado, apesar de estar na idade e o serviço ser obrigatório, para a guerra do Ultramar.