Dois chumbos para dois irmãos

julie-machado.jpgO ensino escolar em Portugal permite que os professores dêem todas as oportunidades possíveis para ajudar a passagem de ano dos alunos, sendo por isso difícil alguém ficar retido. Ainda com negativas a matemática e a português pode-se passar o ano. […]

Então por que razão dois alunos naturais de Famalicão, no Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, no 9º e 7º anos, foram chumbados não um, mas dois anos escolares? Por que é que, se são ambos alunos com média de 5 valores, do Quadro de Honra e participantes vencedores de múltiplas Olimpíadas educativas, são obrigados a repetir toda a matéria, são colocados em turmas com alunos dois anos mais novos e terão de ficar com este chumbo de dois anos no seu currículo escolar?

Simplesmente porque não frequentaram uma disciplina, recentemente criada (ano lectivo 2018/2019) chamada Cidadania e Desenvolvimento (CD), pois os seus pais usaram um direito garantido na Constituição, que é a objeção de consciência.

Já aqui tinha escrito sobre este caso, e não gosto muito de me repetir sobre os temas, sobretudo quando nada de relevante surge para contextualizar e enriquecer a discussão. Lamentei então que nenhum órgão de comunicação se tivesse interessado pela história, trazida ao conhecimento público por uma página panfletária e tendenciosa, habitualmente conotada com a agenda e as posições ideológicas da extrema-direita.

Pois bem, ontem o Observador decidiu pegar no assunto. Só que, em vez de fazer aquilo que é próprio do jornalismo – informar com objectividade, ouvir os diversos intervenientes e confrontar as posições contraditórias – preferiu dar a palavra a uma cronista que se confessa “amiga” do pai que impediu os filhos de frequentarem as aulas de Cidadania. E que se limita a repetir e amplificar os argumentos que já conhecíamos.

Fique claro que, se de facto ordenou a retenção dos dois alunos e o recuo em dois anos do seu percurso escolar, o SE João Costa assumiu uma atitude anti-pedagógica, persecutória e profundamente lesiva dos interesses dos alunos. Não me parece sequer que esteja dentro das suas competências legais decidir administrativamente, passando por cima das competências dos conselhos de turma, anular dois anos do percurso escolar de sucesso destes alunos.

Mas esclareça-se também que o principal argumento do pai e dos seus apoiantes cai pela base ao basear-se num suposto direito constitucional à objecção de consciência. É que este não é um direito universal e abstracto, como o são o direito à vida, à liberdade ou à segurança: a própria Constituição define que o seu exercício é feito “nos termos da lei” (ponto 6 do artigo 41.º). Ora não há qualquer lei que determine o carácter opcional da disciplina de Cidadania, como sucede, por exemplo, com as aulas de EMRC.

Também é abusivo invocar o carácter doutrinário da nova disciplina: será subversivo conhecer e respeitar os Direitos Humanos, cuja Declaração Universal até o Estado Novo subscreveu? Reconhecer a universalidade e a igualdade desses direitos, sem discriminações? Compreender fenómenos sócio-culturais do mundo em que vivemos, como a interculturalidade ou as questões de género? Abordar numa perspectiva culturalmente mais abrangente, mas adequada às faixas etárias em causa, temas relacionados com a sexualidade e os afectos que já constam, há décadas, dos programas de outras disciplinas?

Mais: faz algum sentido que um pai orgulhoso dos seus filhos inteligentes, que alcançam com mérito o “quadro de honra”, tenha medo que venham da escola “doutrinados” por ideias divergentes das que a família defende? Parece-me que haverá aqui uma notória falta de confiança no seu pensamento reaccionário e ultramontano e na sua capacidade de reter os filhos dentro do seu redil ideológico.

A escriba do Observador invoca o mau exemplo do multiculturalismo à americana para defender uma escola onde as opções ideológicas, políticas ou religiosas das famílias podem ser invocadas para subtrair os filhos ao ensino de determinadas matérias ou disciplinas menos “consensuais”. Mas é preciso que se diga com clareza que essa não é nem a tradição nem o modelo educativo vigente na escola pública portuguesa.

Na verdade, a escola existe não para reproduzir as diferenças e as desigualdades existentes entre as famílias e os grupos sociais, mas precisamente para proporcionar a todos um conjunto de aprendizagens comuns, indispensáveis ao seu desenvolvimento pessoal e social. Para os enriquecer com outras perspectivas e realidades, diferentes das que o seu meio de origem lhes pôde proporcionar.

Se as aprendizagens mais específicas da “cidadania” devem ser integradas nos conteúdos curriculares das disciplinas clássicas ou serem destacadas num tempo lectivo próprio, essa é uma questão legítima, que merece ser discutida. Sendo à partida mais favorável à primeira hipótese, sou o primeiro a lamentar que a decisão tenha sido imposta, pelo SE Costa e os seus cortesãos, com escassa ou nula discussão pública. Mas nada disto legitima o ataque, sob o pretexto da censura parental, à escola pública e aos valores de uma sociedade plural, tolerante e democrática.

10 thoughts on “Dois chumbos para dois irmãos

  1. A meu ver, o problema não deve ser centrado nem no debate sobre a eventual propriedade do ensino daquela disciplina nem no falso direito de o EE decidir do currículo dos seus filhos. O que aqui realmente releva são outros aspectos. Uma vez que o pai decidiu excluir os filhos dessa disciplina, a escola tinha a obrigação de encetar imediatamente um diálogo construtivo para lhe fazer ver as graves consequências inerentes. Creio que tal não foi feito. Se a recusa do EE se mantivesse, a escola teria de ter feito intervir os serviços do ME, até a Inspecção, para alterar o curso dos acontecimentos. Nada se fez e apenas as instituições se refugiaram na burocracia. No fim do ciclo, o SE, em vez de tentar resolver o problema, decidiu agravá-lo brutalmente,ignorando por completo para as consequências. Essa foi a decisão mais estúpida, cretina, absurda e desastrada jamais tomada por um responsável. Obrigar os alunos a repetir tudo, quando apenas bastava frequentar a disciplina em falta, revela uma cobardia, uma cegueira e um abuso de poder para lá do imaginável. Esses alunos, até aqui brilhantes, ficarão profundamente traumatizados para toda a vida. A legítima revolta desses dois jovens marcará indelevelmente o seu aproveitamento. Por alma de quê se quer roubar dois anos ao excelente percurso escolar destes jovens? O que se ganha com isso? Logo, é preciso e urgente a demissão imediata pura e simples do espírito obtuso que fez tal monstruosidade.

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  2. Uma outra visão sobre o mesmo tema.
    Tal como Religião e Moral é optativa, também estes tópicos o deveriam ser.
    Um muçulmano nada tem de ser obrigado a saber sobre o Catolicismo, tal como matérias diversas que recolhem consenso geral – defesa do ambiente, sustentabilidade,segurança rodoviária, comportamentos de risco, etc – não têm de ser misturada e impostas com temas fraturantes da ideologia de género e sexualidade/ saúde reprodutiva.

    Carta aberta aos pais de Famalicão

    Caros amigos!

    Há muito que não nos vemos… desde os primeiros anos da APFN ( Associação Portuguesa das Famílias Numerosas), quando vos encontrámos pela primeira e talvez última vez, aí pelo norte. Nessa altura ,vocês tinham apenas três filhos, julgamos . Nós, o Henrique e eu, éramos pais de sete , eu professora e o Henrique oficial da Marinha de Guerra. Não nos moviam ambições políticas , aos fundadores da APFN e aos primeiros lutadores desta causa, apenas a defesa das famílias e dos seus legítimos direitos, sobretudo as numerosas ( a partir de 3 filhos) e mais esquecidas da agenda política de então, já se prevendo o inevitável inverno demográfico em que hoje nos encontramos.
    Os anos passaram e não nos surpreende que os vossos problemas neste momento sejam a defesa do modelo educativo em que acreditam e a defesa dos direitos dos vossos filhos numa escola pública . A situação em que agora se encontram não nos pode ser indiferente!
    Hoje somos avós de 16 netos, entre os 21 anos e os 8 meses e já estamos na reforma e retirados da primeira fila destas lutas de sempre . Contudo, queremos dar vos o nosso apoio moral!
    Não entendemos o despacho insensato e muito injusto das autoridades para convosco e vossos filhos!
    Em primeiro lugar, louvamos a vossa coragem em ir contra o politicamente correto e o silêncio acomodatício.
    O programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento , segundo dizem, tem grande autonomia, afirma se apenas como um documento de referência e permite de facto, aos professores e escolas, fazerem muito bem ,ou muito mal ,à cabeça de crianças e jovens. De mistura com matérias diversas que recolhem consenso geral – defesa do ambiente, sustentabilidade,segurança rodoviária, comportamentos de risco, etc – impõe os temas fraturantes da ideologia de género e sexualidade/ saúde reprodutiva. Ora é direito e dever dos pais abordarem estes temas quando e como entenderem, e pedirem ajuda da escola se não se sentirem aptos a fazê lo, mas a Escola não pode, nem deve imiscuir se, ou substituir os pais em matérias tão delicadas e marcantes para o resto das suas vidas ! Aliás, já assim acontece com as as aulas de Religião e Moral que só são frequentadas pelos alunos que quiserem, ou cujos pais os inscrevam. Porquê? Precisamente porque tem a ver com foro íntimo e liberdade de opção dos pais. Uns querem, outros não ! E assim está correto. Se os pais querem e as crianças/ jovens também, inscrevem se livremente e além disso , têm as igrejas e Catequese, ou ensino privado católico. Se têm outras convicções, elas são respeitadas.
    Então , por que razão não são retirados estes dois temas da disciplina , e não se dá hipótese de só frequentarem estes temas aos alunos cujas famílias neles os inscrevam? Porquê impor conteúdos que vão contra as convicções mais profundas dos pais?
    E no caso concreto destes dois alunos de Famalicão com muito bom aproveitamento escolar, porque não lhes dão oportunidade de fazerem Trabalhos sobre os outros temas da disciplina e um teste final com opções A e B, em que possam mostrar o seu saber sem haver esta mostra de insensato autoritarismo da parte do poder político, impondo a disciplina à força? Não haverá mais pais que por medo de prejudicarem os seus filhos nas notas, estejam muito calados? E é justo reprovar estes alunos e fazê lós recuar dois anos? Há decisão mais absurda e injusta?
    Não vivemos ( ainda) numa democracia?
    Porquê este desrespeito dos direitos dos pais como primeiros educadores?
    Haja bom senso e justiça, por favor !
    Quisemos deixar aqui propostas de solução que respeitem estes Pais e seus filhos e que sirvam de paradigma para o futuro!

    Cumprimentos cordiais e um abraço amigo aos pais corajosos!

    Fátima e Henrique Fonseca

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    • Cara Marta, que “tópicos” é que devem ser opcionais?

      Os Direitos Humanos?
      A Constituição?
      A diversidade cultural?…

      Já viu a barbaridade que é afirmar que um muçulmano não tem de saber nada sobre o catolicismo (ou vice-versa)?
      Isso estuda-se na escola, por exemplo em História, muito antes de existir a disciplina de Cidadania.

      Sobre sexualidade e saúde reprodutiva, saiba que são matérias abordadas, há décadas, nas aulas de Ciências, até com mais profundidade do que sucede na Cidadania. Vamos também dar aos pais o direito de censurar estas aulas?

      A família será o primeiro educador, e esse papel ninguém lho quer tirar, mas pode a família privar os filhos de aprenderem outras coisas ou contactarem com outras realidades que vão além da educação familiar?

      Respeito muito a diversidade de ideias e convicções que podem coexistir na sociedade, mas o papel da escola é trabalhar essa diversidade. Não é formar guetos, onde para um lado vão os meninos das famílias numerosas e muito católicas, para outro lado os muçulmanos, para aqui os ateus, para acolá os ciganos e por aí fora…

      Aos pais, convictos de que deram a melhor educação e os princípios mais sólidos aos seus filhos, pergunto ainda: acham mesmo que é uma aula semanal de 45 minutos – e que não é nada daquilo que imaginam – que vai lançar os vossos filhos no caminho da perdição?

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      • É a primeira vez na vida que me confronto com tão sórdida situação : invocar a objecção de consciência para “proteger” um filho de determinadas noções que o progenitor considera inaceitáveis numa dada disciplina. Essa figura jurídica não se aplica no caso vertente, como é óbvio.

        Se me permitirem a graçola , aconselharia esse senhor a não matricular o seu filho – ou filha – na disciplina de História da Arte : para não recuar a outras épocas, quando chegasse ao Renascimento ficaria escandalizado com a pilinha de David , essa emblemática obra da autoria do grande Miguel Ângelo .

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    • Temas fracturantes? Deu-se ao trabalho de ler algum dos diplomas e documentos orientativos? É precisamente por haver famílias que negam a realidade que a escola deve informar os alunos nestes temas – DSTs, planeamento familiar, igualdade de género, liberdade de escolha… Educar para a liberdade e para o respeito vai contra que crenças?
      Quando começarão negacionistas do holocausto a impedir os filhos de assistir às aulas de história?

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  3. A este respeito, talvez a objeção de consciência não seja, de facto, o mecanismo legal mais adequado.

    No entanto, basta usar as palavras do próprio secretário de Estado para mostrar que a imposição da disciplina como obrigatória vai contra a Constituição.

    Em particular, há um ano o Secretário de Estado escreveu (https://blogue.rbe.mec.pt/a-cidadania-nao-e-facultativa-joao-2274616) o seguinte:

    “Alguns alegam que a Cidadania e Desenvolvimento é um instrumento de “ideologização” ou de “doutrinação”. São os que tentam importar para Portugal a infeliz ideia da escola sem ideologia, como se isso não fosse apenas a receita para introduzir uma ideologia alienante muito particular e que, tantas vezes, é legitimadora do discurso do ódio.”

    Ora, João Costa não diz que a disciplina não tem carácter ideológico, e em vez disso critica a “infeliz ideia da escola sem ideologia”. Mas uma escola pública sem ideologia é precisamente o que está explícito no artigo 43º da Constituição, o qual o Secretário de Estado não se parece importar de ignorar.

    “2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.”

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    • Acho difícil vislumbrar qualquer substrato ideológico na salgalhada de temas que compõe a nova pseudo-disciplina.

      A Cidadania e Desenvolvimento espelha acima de tudo o conceito de uma escola superficial, que tenta ser divertida e apelativa indo atrás das tendências e das modas do momento. Discordo da disciplina, mas acho ridícula a guerra ideológica que alguns querem travar à sua volta.

      Os temas da CD não são ideológicos e nem sequer há histórico ou tradição de a escola e os professores portugueses, desde a instauração da democracia, andarem a fazer proselitismo ou doutrinação política ou religiosa. O que queremos é que os nossos alunos aprendam, e com esta fragmentação curricular a que o ME chama flexibilidade aprendem muito pouco. E sobretudo perdem tempo que poderia ser muito melhor aproveitado nas disciplinas a sério.

      O que me parece é que os Direitos Humanos, a sexualidade, a igualdade de género, a interculturalidade ou as alterações climáticas ganham em serem estudados de forma estruturada no contexto disciplinar da História, da Geografia, das Ciências Naturais, da Literatura, da Filosofia, em vez de serem tratados superficialmente, à base de achismos e de pesquisas instantâneas no dr. Google – que é o que se consegue fazer numa aula semanal de 45 minutos de CD, muitas vezes leccionada por um professor que não é especializado na área.

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