Brincadeira, disse ela

games.jpgLê-se a extensa prosa da dra. Lúcia Vaz Pedro, arvorada em defensora oficiosa do Acordo Ortográfico – que os seus verdadeiros responsáveis académicos e políticos, há muito enjeitaram a duvidosa paternidade – e, para além do relambório inconclusivo sobre as complicações e contradições do texto do acordo e da proposta de revisão da ACL, os argumentos que sobressaem continuam a ser os mesmos de sempre, e ambos muito fraquinhos: o da autoridade e o do facto consumado:

Não nos podemos esquecer que há jovens que desconhecem totalmente a grafia antiga; recolocar consoantes mudas seria brincar com a língua, desvalorizando um tratado internacional.

Quando a Academia refere que estas sugestões constituem «um contributo que resulta de aturada reflexão […]», é altura de dizermos que preferimos refletir sem brincar, porque há mais de duzentos e cinquenta milhões de utilizadores da Língua Portuguesa e existe um tratado internacional que devemos respeitar.

Nota-se também aqui que, numa era em que a democracia aparentemente se universalizou, os tratados internacionais se tornaram o instrumento preferido para impor decisões autocráticas à revelia da vontade dos povos. Assim como, entre nós, a Igreja Católica continua a beneficiar de privilégios irrevogáveis por causa da Concordata, ou o Orçamento de Estado a ser submetido anualmente à aprovação de um directório de eurocratas não eleitos, também na ortografia nos dizem que não se pode mexer porque as regras se encontram blindadas por um tratado internacional que os outros parceiros, contudo, aplicam apenas na medida das suas conveniências.

Quando os acordos internacionais são usados para manietar a soberania dos povos, impedindo as discussões livres e as decisões democráticas, estamos a abrir a porta aos populismos proteccionistas que estiveram na base da eleição de Trump e que poderão levar mais países europeus a seguirem o exemplo britânico de abandono da UE e dos tratados europeus.

Quanto às “brincadeiras com a língua” que tanto incomodam a sisuda doutora acordesa, parece-me que quase todos os nossos grandes escritores brincaram com o Português, para deleite de quem os lê. Pelo que talvez fosse sensato deixar as brincadeiras linguísticas aos criadores literários, em vez das desinspiradas prelecções dos burocratas da língua sobre as regras do bem escrever.

1 thoughts on “Brincadeira, disse ela

Comentar

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.