Os novos ignorantes

Faço uma distinção entre aquilo a que chamo “a antiga ignorância” e “a nova”. A antiga tem muito que ver com a baixa qualificação profissional, com a insuficiente escolaridade, com a má qualidade de muitas escolas, sem meios, sem professores preparados, com o analfabetismo funcional. É um factor do nosso atraso e ajuda a potenciar os efeitos perversos da nova ignorância, mas não a explica por si só. […]

A antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa ilusão. É por isso que a antiga ignorância era vista como um problema da sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.

O primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de “presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam adictivas como a droga. Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida.

Nada é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias, vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia. Que vida pode sobrar?

Pacheco Pereira faz uma reflexão longa e rica, que promete continuar, sobre o impacto das novas tecnologias e correspondentes novas formas de sociabilidade, nas sociedades actuais. As palavras não são agradáveis para os que se converteram aos telemóveis inteligentes e permanentemente conectados às redes sociais, que tendem a ver no autor um velho do Restelo, mas a realidade descrita por JPP e os argumentos que usa são difíceis de rebater.

É verdade que as redes sociais, ao mesmo tempo que nos abrem o mundo, também nos tribalizam: tendemos a formar os nossos grupos de amigos e conhecidos sobretudo com pessoas que pensam como nós e gostam do que nós gostamos. O que falta aqui? Muita coisa, desde o silêncio à expressão do contraditório. Busca-se o fácil e o imediato: partilha-se mais do que se publica, garatuja-se mais do que se escreve, julga-se, insulta-se e condena-se muito mais do que se reflecte ou argumenta. Qualquer guru das redes sociais faz chegar a sua opinião desinformada, o seu preconceito, o seu chiste, a milhares de seguidores que de imediato o reproduzem. E tudo se torna mais preocupante se pensarmos que milhões de internautas têm hoje as redes sociais como fonte quase exclusiva de informação. Ou, vendo de outra perspectiva, que já não são as redes sociais que comentam as notícias, é muitas vezes a imprensa tradicional, na sua busca desesperada de audiências, que vai atrás dos boatos e das tendências na internet para construir as suas notícias.trump.jpg

A caricatura de Trump, a governar “a América” e o mundo enquanto dispara os seus tweets incendiários, tornou-se bem a metáfora do novo mundo que temos por aí.

4 thoughts on “Os novos ignorantes

    • Boa pergunta, para a qual gostaria de ter uma resposta clara.
      Claro que desligar a net não é a solução.
      As novas tecnologias têm vantagens e representam ganhos para quem aprendeu previamente a ler e a escrever, a reflectir e a argumentar.
      Para quem não se dedicou a nenhuma destas coisas, a facilidade das mensagens idiotas ou sem sentido, os retweets e as partilhas podem não ser mais do que a manifestação de uma ignorância contente consigo própria.
      Nesse sentido, talvez a tomada de consciência da realidade, como ela se apresenta e não como é vendida pelos propagandistas da mirífica “sociedade do conhecimento”, seja já um primeiro passo no caminho certo.

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    • Pois, é talvez por aí.
      Especialmente válido para os consumidores do facebook e similares, dentro daquela velha máxima de que, se não paga para usar o produto, você é o produto!

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