Desobediências

Muitos órgãos da Administração Pública não cumprem as ordens da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos para publicarem documentos.

Vários organismos públicos não cumprem as ordens da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA) e recusam libertar documentos mesmo após decisões favoráveis aos requerentes.

O número de processos em 2023 alcançou um recorde com 1263 casos, o maior desde a criação da CADA em 1994, indicando uma crescente exigência por transparência e acesso à informação.

O presidente da CADA, juiz conselheiro Alberto Oliveira, expressou preocupação com o que descreve como uma “resistência ao mais alto nível“, atribuindo parte do problema ao governo anterior.

De acordo com o relatório anual da CADA, 90% das decisões tomadas foram a favor dos queixosos, que incluem principalmente cidadãos individuais, jornalistas e empresas. A maioria das queixas envolve câmaras municipais, juntas de freguesia, hospitais, centros de saúde, escolas e ministérios, aponta o JN.

O incumprimento generalizado das decisões da CADA é um problema mais complexo do que se quer fazer crer. É verdade que existem leis sobre a transparência dos actos administrativos que estabelecem o direito de acesso dos cidadãos à documentação produzida pelos serviços para fundamentar decisões, sem necessidade de invocarem, sequer, o interesse directo na informação pretendida. Mas não é menos verdade que o enquadramento legal dos procedimentos administrativos institui regras de sigilo e confidencialidade que entram em conflito directo com o princípio do livre acesso aos documentos.

Vou cingir-me a uma área que, por dever de ofício, conheço razoavelmente, tal como muitos professores: a avaliação do desempenho docente, vulgo ADD. Quem criou o regime de avaliação em vigor confiou tanto ou tão pouco nas suas virtudes que instituiu a regra do secretismo de tudo o que diga respeito à avaliação de cada docente: em princípio ninguém, à excepção do avaliador, dos elementos da SADD e do próprio avaliado, tem conhecimento das classificações atribuídas.

Contudo, existindo um sistema de quotas a condicionar a obtenção das classificações ditas de mérito, as notas mais altas de alguns docentes determinam que outros, pior classificados, não obterão as vagas necessárias à progressão pois estas, à partida, não chegarão para todos. Perante isto, deve um professor que pretenda reclamar da sua avaliação poder ter acesso às fichas de avaliação dos seus colegas, às atas das reuniões onde as notas foram atribuídas e demais documentação de apoio à ADD? Nos casos submetidos à apreciação da CADA a resposta é, regra geral, afirmativa. Mas os deveres de sigilo e confidencialidade continuam inscritos na lei que, ao contrário das decisões da CADA, é vinculativa.

É por aqui que se explica que 90% de decisões da comissão sejam desrespeitadas: ninguém é punido por não cumprir aquilo que, tecnicamente, não passa de uma recomendação, a não ser que um tribunal ordene expressamente o seu cumprimento. Mas pode ser-se processado por violar a lei, quando esta manda guardar sigilo sobre documentação confidencial a que qualquer funcionário, pela natureza das suas funções, possa ter acesso.

Uma administração pública transparente, digna de um Estado de direito democrático ao serviço dos cidadãos e respeitadora dos seus direitos é muito mais do que a promoção de litigâncias em torno do acesso a documentos que, teoricamente, deveriam estar acessíveis a todos. Do que precisamos verdadeiramente não é de “comissões de acesso” mas de enquadramentos legais para os procedimentos administrativos que estabeleçam a publicidade dos actos como regra em vez de excepção. Se, pegando no exemplo de há pouco, a ADD de todos os professores de um agrupamento pode ser dada a conhecer a qualquer um, então imponha-se como regra a sua afixação pública, dando-a a conhecer a todos e não apenas àqueles que se “mexem” para a obter. Informação é poder, e tão mais democrático é um regime quanto mais esse poder estiver disseminado entre os seus cidadãos.

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