Burguesa do teletrabalho será vosselência!…

Eu sou um trabalhador.

Toda a vida vivi do rendimento do meu trabalho. Nunca usufrui de rendas, lucros, juros ou outros rendimentos de capitais ou de bens ao luar. Nunca realizei mais-valias explorando a força de trabalho alheia para meu enriquecimento. Não me considero um burguês, um capitalista, nem escolhi estar em teletrabalho. Não passei, pelo facto de estar a cumprir o confinamento obrigatório, a trabalhar menos ou a deixar de cumprir qualquer dos meus deveres e responsabilidades profissionais.

Poderá a cronista, estrela ascendente no universo dos opinadores do regime, sentir o deslumbramento de chegar às primeiras páginas da imprensa com soundbites retumbantes e provocadores. Julgará talvez encontrar alguma sensatez na frase que proferiu. Mas a estratégia é mais velha do que a Sé de Braga: tentar virar os trabalhadores uns contra os outros. Trabalhadores braçais contra intelectuais. Contratados versus efectivos. Empregados do sector privado em oposição a funcionários públicos. Dividir para reinar, um lema de todos os poderes políticos económicos instituídos e certamente um desiderato caro aos patrocinadores privados da mais cotada faculdade de Economia, onde a nova estrela do comentariado lecciona.

É verdade que a maioria dos salários em Portugal são uma miséria. Mas não é esmagando ainda mais os rendimentos da classe média que melhoraremos a redistribuição da riqueza entre a população. Nem é penalizando os que têm emprego e podem proteger-se da pandemia – como se trabalho e saúde tivessem deixado de ser direitos e passassem à categoria de privilégios – que asseguramos melhores condições aos que têm de trabalhar, tantas vezes em condições precárias e inseguras, fora de casa.

Um combate efectivo às desigualdades e maior justiça social só podem ser alcançados com uma melhor redistribuição dos rendimentos. Isto significa tributar mais os rendimentos do capital, aliviando a tributação do trabalho: precisamente o contrário do que décadas de política económica neoliberal, posta em prática por governos de diversas cores políticas, produziram no nosso país.

Não deixa de ser curioso que não se questione a fundo a fraude descarada nas contas do Novo Banco, onde continuamos a injectar dinheiro público. Que os monopólios naturais da energia e as grandes empresas da distribuição continuem a aumentar e a expatriar os seus lucros e a beneficiar da crise sem que se equacione a necessidade de, esses sim, darem o seu contributo para a recuperação da economia. Que se tenha transformado a TAP num imenso sorvedouro de dinheiro público sem quaisquer garantias de sustentabilidade futura da empresa ou dos postos de trabalho que andamos a sustentar artificialmente. Que os grandes devedores do regime continuem a ser tratados como cidadãos de mérito, em vez de serem obrigados a pagar o que devem.

Entretanto, a prosa aperaltada foi amplamente discutida no Twitter, onde @speraltalisboa escreve e polemiza com regularidade. Acompanhei um pouco da discussão e, sinceramente, a polemista desiludiu. Susana Peralta é livre de ter as suas ideias e, como professora da escola de economia&negócios com mais peneiras do país, sentir-se-á até investida de alguma autoridade para proferir afirmações mais ousadas. Mas não teve arcaboiço intelectual para defender até ao fim o seu ponto de vista ou, o que também não lhe ficaria mal, admitir que a argumentação foi excessiva ou que não se expressou da melhor forma. E acabou nesta triste figura: afinal já não quer taxar os rendimentos do trabalho mas sim os supostos ganhos de capital que os “burgueses em teletrabalho” terão auferido.

Acham mesmo que quando falo de “cobrar impostos à burguesia do teletrabalho” estou a falar de impostos sobre o rendimento do trabalho? Claro que não. Muitas dessas pessoas bem pagas do setor dos serviços tem rendimentos de capital que aumentaram durante a crise e são tributáveis.

Mas nada disto é dito na entrevista original. O que ficou escrito, preto no branco, é a taxação de toda a “burguesia em teletrabalho” que não perdeu rendimentos, não se ressalvando sequer que serão apenas os que têm salários elevados – há teletrabalhadores, por exemplo no sector dos call centers, a ganhar o salário mínimo -, muito menos qualquer referência a rendimentos de capital. A tentativa de virar o bico ao prego está ao nível, não de uma professora universitária, mas de um aluno pouco estudioso que, incapaz de distinguir trabalho e capital, improvisa uma teoria da treta para se safar. Mas nestas coisas, já se sabe: mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo.

Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste setor e são as pessoas com mais escolaridade. Podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise.

8 thoughts on “Burguesa do teletrabalho será vosselência!…

  1. Sim, sim, tudo menos ir buscá-lo onde ele está, ou seja, às grandes empresas com sedes deslocalizadas em paraísos fiscais, taxando-as não pelo local da sede, mas pelas actividades concretas que desenvolvem nos países onde operam. Tudo menos taxar as grandes fortunas imobilizadas nesses paraísos para se eximirem às suas responsabilidades fiscais. Tudo menos taxar as maningâncias das empresas-fantasma usadas como veículos para as fugas e exploração dos alçapões “legais”. Tudo menos taxar a economia de casino das bolsas (taxa Tobin). Agora assaltar ainda mais os rendimentos do trabalho por conta de outrem, é uma receita já tão estafada que já ninguém acredita, nem sequer a “nossa amiga Suzy”.

    Gostar

  2. Não façam mal a quem foge a impostos e tem poupanças em offshores!
    Esses não são ricos. São empreendedores com visão. Não se metam.
    Os ricos são, como alguns dizem, os que têm salário superior ao salário mínimo e que, mesmo assim, é salário abaixo de cão. Malandros! Paguem uma taxa! Já!

    A Susana é…sei lá o lhe hei-de chamar….doida?
    Mas sei que escreve muito malzinho. Deve ter sido das sebentas que leu traduzidas em espanhol.

    Gostar

  3. Um momento de sorriso que envio à Susana,

    Troca o Natal pela Páscoa que se aproxima. O resto vai dar ao mesmo.

    “Salvem os ricos; ajudem os milionários!”

    Gostar

  4. Posso dizer que o burguês do teletrabalho que escreve estas linhas é um professor contratado. Sim, tenho menos despesas do que em tempo de aulas presencias, mas apenas em termos de transportes públicos, pois o quarto arrendado numa cidade em que não estou continua a ser pago com o meu SALÁRIO. Recomendo à economista que releia ou leia o opúsculo “Trabalho assalariado e capital”, de Marx.

    Gostar

Comentar

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.