Escola do século XXI, ou a banha da cobra educativa

banha-da-cobra.pngO futuro das crianças que se iniciam agora na escola é uma incógnita mas, mesmo assim, continuam a ser ensinadas através de “um programa curricular pensado há muitos anos”, criticou Rod Allen, mentor e co-autor de uma profunda reforma curricular no Canada, no Encontro Nacional de Autonomia e Flexibilidade Curricular, que decorreu esta semana na Figueira da Foz.

A mudança no Canadá surgiu quando se aperceberam que estavam “a preparar os alunos para um mundo que já não existia”, recordou o ex-vice-ministro adjunto da província canadiana da Colúmbia Britânica.

Rod Allen reproduz o mantra ideológico que organizações internacionais como a OCDE e multinacionais e fundações com interesses na Educação não se cansam de promover.

Como é habitual entre os propagandistas da banha da cobra, o discurso, falacioso, surge envolto em evidências incontestáveis e em meias-verdades que ajudam os mais incautos a baixar as defesas. E a engolir, sem suficiente reflexão, a pastilha da flexibilidade, do conhecimento na palma da mão, do aprender a aprender, do mundo que já não existe, das profissões que ainda não existem e por aí fora.

Evidentemente, não se contesta que a escola deva evoluir, como sempre o fez, acompanhando as transformações sociais e culturais. Mas o que se vê, nos tempos que correm, é uma súbita e impaciente vontade de mudança, que nasce, não das necessidades e aspirações de quem estuda e trabalha nas escolas, mas de imposições a partir do exterior. O que está em curso é uma ofensiva concertada de políticos demagogos, empresários com um olho no mercado educativo, filantropos em busca de  influência  e cientistas da educação desejosos de notoriedade. O alvo é, naturalmente, a escola pública. Que a privada persegue os seus próprios interesses e não vai nestas conversas. A não ser que tenha algo a ganhar com isso…

Quanto à retórica de Rod Allen, reproduzida na notícia do Educare, ficam, em forma de notas telegráficas, as principais objecções que encontro a um discurso que não é por ser mil vezes repetido que se torna mais verdadeiro ou convincente.

A escola sempre preparou para o futuro e cada geração tem os seus próprios desafios e realidades novas a enfrentar. Mas a melhor forma de enfrentar o futuro incerto não é desvalorizar o conhecimento tradicional em favor de modas educativas – a experiência demonstra que são precisamente as tendências e modas do momento aquilo que mais depressa passa de validade. Já o conhecimento clássico – as línguas, a matemática, as ciências naturais e sociais – esse fornece as bases, não só do conhecimento, mas também das competências – ler, interpretar, raciocinar – que sempre serão úteis e necessárias.

Os telemóveis dão-nos informação, não conhecimento. O conhecimento depende da capacidade de usar a informação que podemos obter de múltiplas formas. Ninguém vai negar as potencialidades das máquinas que nos mantêm permanentemente ligados ao mundo. Mas é um erro pensar que, por termos telemóveis que nos dizem tudo, já não precisamos de desenvolver a memorização, o sentido de orientação, o raciocínio. Se, como nos querem convencer, o conhecimento está no telemóvel, então isso equivale a dizer que, sem o telemóvel, nunca passaremos de ignorantes.

Estuda-se para aprender. Os exames existem apenas nalgumas disciplinas e anos de escolaridade. Há muitas motivações para aprender e ter boa nota no exame não é, em geral, a mais importante. Por exemplo, a generalidade dos alunos portugueses nunca faz um exame de Inglês ao longo dos 12 anos de escolaridade. E, no entanto, aprendem a língua e reconhecem interesse e utilidade nessa aprendizagem. Mesmo sem exame…

A escola nunca foi uma fábrica. Nem foi concebida, como alguns insistem em dizer-nos, para preparar operários para as linhas de montagem. Pelo contrário, a vocação da escola sempre foi a de instruir, valorizar e qualificar as crianças e jovens para que estes pudessem alcançar um melhor futuro, longe do ambiente penoso e deprimente das fábricas do século XIX. Já a escola divertida e facilitista, do telemóvel e do trabalho de grupo, essa corre a largos passos para cortar as pernas aos jovens que ambicionem aceder às tais profissões do século XXI – as que ainda não existem mas que, quando forem inventadas, não serão por certo menos exigentes do que as actuais.

Não há receitas pedagógicas universais. Não faz sentido contrapor a uma escola alegadamente monolítica, assente, dizem eles, no “modelo do autocarro”, uma outra assente num paradigma diametralmente oposto. Rejeitando fundamentalismos, todos os bons professores sabem que a estratégia que resulta com um grupo de alunos pode não funcionar com outros. E que a diversificação e a diferenciação, de acordo com as características dos alunos e dos grupos, acaba por ser sempre o procedimento mais eficaz. Funcionando tanto melhor quanto mais reduzidas forem as turmas. Curiosamente – porque será?… – quando ousamos falar do tamanho das turmas, entramos num tema-tabu para a grande maioria dos novos gurus educativos…

4 thoughts on “Escola do século XXI, ou a banha da cobra educativa

  1. Excelente reflexão – mais uma das muitas aqui postadas, com a mesma profundidade e clareza.Bem-haja, caro A. Duarte.

    “Exijo” a sua publicação na imprensa diária. Para que um universo mais alargado de leitores tome conhecimento da “encruzilhada” onde nos encontramos e aclare virtuosos caminhos .

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      • Não sou tão pessimista, caro António Duarte.

        Face à gravidade do que está acontecendo, a opinião pública não ficaria tão indiferente à opinião dos professores. Apesar de tudo .

        Principalmente quem tem filhos em idade escolar.

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  2. Muito bem, António! Produziu uma reflexão balizada, estruturada e argumentada com pés e cabeça, ao contrário do que fazem os Rodes desta vida.

    Não consigo esquecer a tirada do senhor Rodes, segundo o qual o conhecimento não interessa, mas antes o que podemos fazer com ele. Ora, se não possuo conhecimento, vou fazer o quê com aquilo que desconheço?

    Ou sou profundamente imbecil e não alcanço a profundidade do pensamento dos Rodes deste mundo, ou são estes que têm a boca ligada diretamente ao intestino cerebral.

    Parabéns pelo post!

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