É uma tendência que vem de longe, esta de as gerações mais velhas criticarem a falta de conhecimentos, a preguiça física e mental, a infantilidade e a irresponsabilidade dos mais novos. Mas não é disso que aqui, infelizmente, se trata: nas escolas, vão-se acumulando dados concretos que demonstram objectivamente o declínio das competências básicas e estruturantes, como a leitura, a escrita e o raciocínio, entre os nossos alunos. “No meu tempo é que era bom!” – o dito popular raramente é aplicado com acerto, mas nos dias de hoje, e tendo em conta o plano inclinado por onde desliza a educação dos nossos filhos e netos, temo que comece finalmente a fazer sentido.
Chega de culpar a pandemia, como alguns analistas do fenómeno persistem em fazer: o retrocesso começou muito antes e, como sucede em tudo o que envolve alguma complexidade, não é consequência directa de um só factor. Em boa verdade, há pelo menos três grandes causas que podem ser apontadas: a influência perniciosa dos meios digitais que as crianças usam cada vez mais precocemente, a permissividade da educação parental – ou a falta dela! – e as pedagogias facilitistas com que se tenta democratizar o sucesso escolar, sem que o inflacionamento das notas corresponda efectivamente a mais e melhores aprendizagens.
Na verdade, o que é que custa subir um dois para três, e com isto decretar um sucesso apenas fictício? Em última análise, todos ficam satisfeitos: o aluno e a sua família porque obteve o resultado pretendido, ainda que imerecido, o professor que se livrou de justificações, relatórios e outras burocracias, a escola que acrescentou mais uma ou duas décimas às suas estatísticas de “sucesso pleno”. Sem avalliação externa que exponha a dimensão do inflacionamento das notas, então é ouro sobre azul – como se tornou evidente durante a pandemia, quando as estatísticas denunciaram uma melhoria dos resultados dos alunos, como se tivessem aprendido mais durante o confinamento do que em ensino presencial.
A CNN ouviu vários testemunhos para um trabalho jornalístico que explica muito bem porque é que os estudantes portugueses estão cada vez pior a ler, a escrever e a interpretar aquilo que lêem. Ficam apenas alguns excertos de uma peça cuja leitura integral se recomenda vivamente.
Os estudantes estão a escrever pior? “Voltei este ano a corrigir exames nacionais e assustei-me”
“Enquanto professor e pai, tenho muito receio desta geração e da próxima, porque estamos a criar jovens muito infantilizados. Os jovens têm pouca resiliência e ler é uma das coisas que fazem menos atualmente. Os jogos são mais apelativos e tudo o que é instantâneo, automático é mais atrativo. Têm um léxico muito básico e muito elementar. Tenho alunos do secundário que têm muita dificuldade em estruturar ideias e verbalizá-las ainda é pior”, acrescenta.
“A culpa não é das tecnologias é de quem recorre a elas de forma incorreta. Devíamos apostar na literacia digital dos jovens, para eles terem noção e a consciência de que não basta o copy paste ou um texto bonitinho feito pelo Chat GPT. Tem de haver um treino, um investimento, um ensinamento de como se usam as tecnologias”, apela o docente.
Há erros que são transversais a todos os níveis de ensino, mas há também falhas que são específicas de cada época da vida. Aqueles com que Veronesi mais convive no seu dia-a-dia são os relacionados com a fonologia.
“Temos sobretudo os referentes à segmentação (juntar ou separar palavras). Em primeiro lugar, temos a hipossegmentação, como por exemplo: ‘ligame’ em vez de ‘liga-me’ ou ‘adorote’ em vez de ‘adoro-te’. De seguida, também temos erros de hipersegmentação, ou seja, separar as palavras que deveriam escrever juntas. Exemplo: ‘a mor’ em vez de ‘amor’ ou ‘a mizade’ ou ‘amiza de’ em vez de ‘amizade’. Ainda dentro dos motivados pela fonologia temos os relacionados à estrutura silábica. Como são exemplo ‘braco’ em vez de ‘branco’, ‘peciso’ em vez de ‘preciso’ ou ‘espoldiu’ para ‘explodiu’”, enumera o professor da Escola Básica Manuel Teixeira Gomes, Marvila.
João Pedro Aido é presidente da Associação de Professores de Português (APP) e acrescenta, nos alunos mais novos, um problema de construção frásica que se apoderou das salas de aula e dos recreios. “Em muitas construções omitem o verbo e os artigos quando falam. Dizem, por exemplo, ‘Professora, posso casa de banho?’ ou ‘posso água?’”, exemplifica.
Quanto aos mais velhos, diz o presidente da APP, “os problemas mais graves talvez não sejam ortografia, mas sim pontuação, sintaxe, construção e estruturação”.
João Francisco Silva nota que os alunos “escrevem como ouvem” e encontra muito português do Brasil misturado com a norma europeia, “porque ouvem muitos vídeos de youtubers e tiktokers brasileiros”. João Pedro Aido concorda, mas é mais específico na evocação da questão: “O problema da apropriação de certas estruturas da variedade de português do Brasil é os alunos não terem consciência se as formas são corretas ou erradas. Se veem vídeos onde ouvem alguém dizer ‘eu vi ele’, acham que está correto e passam a falar e a escrever assim”.
O presidente da APP concorda que o problema começa mesmo em casa e dá conta de um aspeto que mais lhe “chamou a atenção nos últimos anos” e que a pandemia até pode ajudar a explicar, “mas não explica tudo”. “Há muita falta de comunicação na família, falta de interação entre os diferentes elementos da família. Isso tem implicações por exemplo ao nível da articulação das palavras, a ponto de haver mais alunos precisarem de terapia da fala. Muitos alunos que estiveram fechados em casa aquele tempo todo, como também não conviviam com ninguém de fora, regressaram às escolas com muitos problemas. As máscaras também vieram causar uma entropia muito grande, porque não vemos os outros a falar e as crianças que estão a aprender não visualizam os movimentos necessários para articular determinados sons. Mas o maior problema é mesmo a falta de comunicação”, alerta.
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