Professor, a 3.ª Guerra Mundial já começou?

Não deve haver neste momento um professor de História no activo a quem os alunos não tenham ainda questionado sobre o que está a acontecer entre a Rússia e a Ucrânia. Usando os conhecimentos que adquiriram sobre guerras passadas, tentam interpretar a catadupa de acontecimentos que alimentam a escalada imparável de um conflito que a todos inquieta. Ao contrário da imagem de alheamento e desinteresse pelo que os rodeia, que vulgarmente vem sendo associada às novas gerações, tenho visto entre os meus alunos muitos jovens interessados, inquietos e preocupados com o que parece ser, para já, a maior ameaça à paz europeia deste novo milénio.

Não estaremos no entanto, nem por sombras, à beira de nova guerra mundial. Os mecanismos de contenção estabelecidos desde o final da Segunda Guerra Mundial – que basicamente interditam a intervenção militar directa de uma superpotência onde outra já está envolvida – mostraram-se eficazes durante os últimos 75 anos, e nada indicia que estejam em vias de ser desrespeitados.

Por outro lado, a invasão de território de um estado soberano, a pretexto de reivindicações territoriais ou de garantir a segurança do próprio invasor, também não é novidade. Já não têm conta as operações militares deste tipo patrocinadas por diversos países, a começar logo pelos Estados Unidos, que terão provavelmente o mais extenso rol de intervenções militares no exterior. Israel, que continua o seu genocídio em lume brando do povo palestiniano, consegue ser ainda mais eficaz ao bloquear o reconhecimento do Estado Palestiniano: sem fronteiras e soberania definidas, as anexações, prisões, assassinatos, demolições e instalações de colonatos fazem-se ainda mais facilmente, com a complacência da comunidade internacional. E que dizer da Sérvia, que apesar de ser um estado reconhecido internacionalmente e com fronteiras definidas, viu ser-lhe imposta a amputação de parte do seu território para a criação de um novo país, o Kosovo, justificada pela vontade da maioria dos seus habitantes, os kosovares? Talvez apenas que a secessão foi imposta pelos EUA e a NATO, com escassa consciência do perigoso precedente que estavam a abrir?…

Claro que nada disto justifica o expansionismo militar russo e o velho expediente de recorrer à guerra para continuar a fazer política. Mas só ignorando ou menosprezando os ensinamentos da História se poderia esperar que a política de isolamento e cerco à Rússia, através da expansão da NATO até às suas fronteiras, não viesse a mostrar-se contraproducente em relação ao objectivo maior de alcançar a paz e a estabilidade na Europa de Leste.

Ainda assim, História não é futurologia. Ela consegue explicar-nos como chegámos onde estamos, ajuda-nos a prever consequências dos nossos actos e dos de terceiros, mas não impõe respostas nem apresenta soluções incontornáveis e definitivas. O futuro está em aberto e o passado não se repete, sendo ainda cedo para avaliar como irá evoluir e que consequências a médio e longo prazo irá ter a guerra que hoje começou. Os desígnios de Putin e dos interesses que representa são, a partir de um certo ponto, insondáveis, e nem todos os ucranianos, tal como nem todos os russos, pensam ou desejam o mesmo em relação a este conflito. Haverá interesses económicos em jogo – e eles assumem um papel determinante nas guerras modernas – mas também as pressões e sanções internacionais serão, num mundo cada vez mais globalizado e interdependente, uma cartada a jogar.

De resto, quanto a prognósticos e previsões para o futuro, há pelo menos um que me arrisco a fazer: neste remake de guerra fria em que Rússia e países ocidentais se deixaram enredar, é a China, até há bem pouco tempo pouco mais do que um estado pária no contexto das relações internacionais, que poderá vir a adquirir um estatuto de referência e talvez até de árbitro isento e equidistante do conflito. É notória a forma cautelosa como o país se posiciona, condenando o separatismo sem quebrar pontes de diálogo e entendimento com os russos, seguindo a linha de uma diplomacia pragmática que tem vindo a afirmar nas últimas décadas. Na afirmação da China, que cada vez disfarça menos a ambição de vir a ser a maior potência económica e política do século XXI, a aliança estratégica com a Rússia será fundamental: algo que a presente crise irá muito provavelmente demonstrar.

9 thoughts on “Professor, a 3.ª Guerra Mundial já começou?

  1. Quero aqui saudar sinceramente o António pela clareza, objectividade, justeza e atenção ao real que evidencia neste excelente texto e que por isso contrasta com os posicionamentos enviesados e parcialíssimos que pululam tanto na blogosfera com nos media mainstream, sempre bem alinhados com os poderes instituidos (the powers that be)

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    • Obrigado, José.
      Se compreender o passado é um exercício que a História sempre nos habituou a fazer, interpretar os sinais dos tempos que vivemos e o futuro que há-de vir será sempre mais arriscado…

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  2. Sublinho esta frase do texto porque me parece que será por aqui que o futuro a curto prazo deste conflito irá passar:
    “Os desígnios de Putin e dos interesses que representa são, a partir de um certo ponto, insondáveis, e nem todos os ucranianos, tal como nem todos os russos, pensam ou desejam o mesmo em relação a este conflito.”

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    • Entretanto, a pacífica e civilizada Europa continua a enviar armas, quando o povo precisa de alimentos e medicamentos. Quanto desse armamamento vai parar às mãos do urso????

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      • Mas quando é que esta Europa tem dirigentes e políticos a sério que consigam fazer algo de inteligente? Tomem lá mais armas e pronto, somos muito solidários e civilizados.
        Daqui a pouco somos cada vez mais um espaço cada vez mais subalternizado a jorrar directivas parvas, a gerir não se sabe bem o quê, a aplicar sanções I, II III…. e a enviar armas .

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