Grupos de Estudo: a luta dos professores na ditadura

Cinquenta anos depois da Revolução de Abril, com o regime democrático e a liberdade sindical consolidados, pode ser oportuno lembrar que, durante o Estado Novo, não era assim. Nalguns sectores profissionais existiam os chamados sindicatos nacionais, controlados pelas autoridades e integrados no sistema corporativo. Noutros, como era o caso dos professores, não existiam sindicatos nem autorização para os constituir.

Mas não nos deixemos enganar por uma imagem idílica que por vezes se constrói da profissão no antigamente: apesar de o corpo docente ser considerado um esteio do regime, devendo não só instruir os alunos mas também educá-los na moralidade e nos princípios ideológicos do Estado Novo, nem por isso a profissão era devidamente valorizada, sobretudo ao nível do então ensino primário. Os salários eram baixos e a precariedade laboral era enorme durante grande parte da carreira. Basta dizer que a grande maioria dos professores não tinham vínculo à função pública, sendo contratados no início do ano lectivo e dispensados quando este terminava. Em vez de um subsídio de férias, a recompensa ao fim de um ano de trabalho era o desemprego forçado durante os meses de Verão.

Foi para começar a discutir e, se possível, tentar contrariar este estado de coisas, que foram criados, no início dos anos 70, os Grupos de Estudo: sob a capa de discussões de natureza pedagógica e profissional, alguns grupos de professores organizaram-se naquilo que viriam a ser os embriões do sindicalismo docente estabelecido após o 25 de Abril. Numa leitura interessante e instrutiva, Agostinho Lopes recorda, nas páginas do Expresso, os tempos heróicos dos GEPDES.

A criação dos Grupos de Estudo dos Professores Eventuais e Provisórios ocorreu a 27 de Maio de 1970, numa reunião na Escola Preparatória Francisco de Arruda/Lisboa realizada com o objetivo de resolver os problemas dos professores provisórios do ensino preparatório e do ensino secundário (técnico e liceal). Refira-se que cerca de 80% dos professores portugueses eram provisórios (ou eventuais, na designação usada nos Liceus), o que implicava não ganharem nas férias, ou seja cerca de três meses. Mas a designação de Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário (GEPDES) só surge a 24 de Novembro de 1971. Depois, para englobar os professores do Ciclo Preparatório, a sigla passou a GEPDESP. A primeira reunião nacional realiza-se em Coimbra a 6 de Março de 1971, e a ordem de trabalhos é focada na redação de um abaixo-assinado a enviar ao Congresso do Ensino Liceal, que então se ia realizar, para que este se debruçasse sobre os problemas dos professores eventuais da classe docente. É este o arranque da mobilização nacional para os Grupos de Estudo. A partir daqui, e até à Revolução, os três eixos estruturantes fundamentais do Movimento foram, para além do pagamento nas férias a todos os professores eventuais ou provisórios, o Estatuto do Professor, a Associação dos Professores e a Formação de Professores – Estágios.

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Reparações

Nos seus tempos de jornalista e intriguista, Marcelo Rebelo de Sousa notabilizou-se como criador de factos políticos. Informar e discorrer sobre o que se passava era coisa pouca para o hiperactivo Marcelo: quando a agenda era curta e os factos políticos pouco sumarentos, havia que ficcionar outros para nutrir um debate político feito de fait divers e questiúnculas artificiais.

Isto vai ao encontro de uma tendência muito comum nas “democracias avançadas”, podendo Marcelo, até certo ponto, ser considerado um percursor: a profusão de temas lançados para o debate público permite aos políticos e aos líderes de opinião promover a discussão intensa do acessório, para que raramente ou nunca se discuta o essencial.

Vem isto a propósito do tema, repetidas vezes suscitado pelo Presidente da República, das eventuais reparações que Portugal deveria fazer às suas ex-colónias por séculos de guerra, ocupação, saque de recursos naturais e bens culturais, escravatura. Não se percebe o que pretende Marcelo “reparar” com as suas palavras – desconfio que apenas ouvir-se a si próprio ou, eventualmente, confirmar se continua capaz de condicionar artificialmente a agenda política – mas noto que o assunto é constrangedor para todos, a começar pelos próprios africanos e brasileiros.

A verdade é que a História é o que é, sendo certo que nada do que façamos no presente vai alterar o passado. Aqueles que mais reclamariam a reparação das misérias e sofrimentos que os fizemos passar morreram há muito. As elites locais que substituíram os antigos colonizadores, não parece que estejam muito precisadas de ajuda externa: nos seus bolsos acaba muita da “ajuda ao desenvolvimento” destinada às populações carenciadas. De resto, existem relações de amizade e protocolos de cooperação entre Portugal e os restantes países de língua portuguesa que beneficiam efectivamente estes países e os seus povos.

Agora, se o objectivo de Marcelo é fazer com que cada português desembolse alguma coisa para compensar roubos, mortes e destruição causados pelos nossos antepassados, aí cumpre notar que nem todos teremos a mesma quota parte de responsabilidade, nem beneficiámos da mesma forma dos desmandos do colonialismo. Por exemplo o pai do actual presidente fez grande parte da sua carreira política, durante o Estado Novo, à custa da exploração colonial: foi, entre outras coisas, governador de Moçambique e ministro do Ultramar. Se vamos a contabilidades, podemos bem começar por aqui.

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A descolonização “trágica”

Antigo Presidente da República qualificou a descolonização como “trágica”. “Digo isto com grande à vontade. Sei que muita gente vai contar que acha que a descolonização foi uma coisa maravilhosa. Não foi”, considerou perante Marcelo Rebelo de Sousa numa aula-debate sobre o 25 de Abril, com alunos de escolas secundárias e universidades, no antigo picadeiro real, junto ao Palácio de Belém, em Lisboa.

As palavras do general Ramalho Eanes, nos 50 anos do 25 de Abril, a propósito do 25 de Novembro e da descolonização, estão a ter eco entre políticos e ideólogos de direita, que não encontram melhor forma de menosprezar a comemoração da conquista da liberdade e da democracia do que explorar os insucessos e os descaminhos da Revolução.

Parco em palavras, e nisso se assemelhando a Cavaco Silva, outra figura esfíngica que, à falta de melhor, serve de referência à direita, Ramalho Eanes faz uma afirmação difícil de rebater: a descolonização portuguesa esteve longe de ser, efectivamente, como alguns a qualificaram na altura, exemplar. Maravilhosa, não me lembro de alguém assim a qualificar.

Mas falta contexto à afirmação categórica de Eanes. Sendo para muitos uma referência ética e moral do actual regime democrático, ficar-lhe-ia bem ressalvar que a tragédia da descolonização não adveio do 25 de Abril. Começou em 1961, quando a recusa obstinada de Salazar e dos políticos do Estado Novo em reconhecer o direito à autodeterminação dos povos africanos empurrou Portugal para uma guerra colonial em três frentes que causou perto de 9 mil mortos, dezenas de milhares de feridos, mutilados e incapacitados e hipotecou o futuro de toda uma geração. Em Portugal, pois entre os povos africanos as perdas humanas, nunca inteiramente contabilizadas, foram várias vezes superiores.

A descolonização estava condenada a ser trágica porque, ao fim de treze anos de guerra, com a liberdade recém-conquistada, o direito à autodeterminação dos povos reconhecido e um Portugal democrático a construir, ninguém mais queria continuar a arriscar a vida em África para garantir uma descolonização diferente. Obrigados a lutar pela independência através das armas, também não havia, entre os povos africanos, outros representantes legitimados que não os líderes políticos e militares dos movimentos de libertação. Era com eles, e nas condições que conseguiram impor que, forçosamente, haveria que negociar a transição de poder.

Militar de carreira a servir nas Forças Armadas em Angola a 25 de Abril de 1974, é legítimo perguntar o que fez Ramalho Eanes para evitar a descolonização trágica que antecipou. A verdade é que fez muito pouco: como tantos outros, aderiu ao MFA e aproveitou a primeira oportunidade para regressar a Portugal, onde rapidamente ascendeu na hierarquia político-militar do MFA, vindo a tornar-se director de programas e administrador da RTP durante o consulado spinolista.

E assim se explica a inevitabilidade trágica da descolonização portuguesa: senhores de um país de fracos recursos, os portugueses tiveram de optar, após a Revolução, entre consolidar a liberdade e a democracia no seu país, ou continuar a empenhar recursos, sacrifícios e vidas humanas tentando garantir, fora do tempo, uma descolonização que pudesse ser um pouco menos trágica do que foi na realidade. Sendo certo que a maior dimensão dessa tragédia de que fala o antigo presidente aconteceu após as independências, com as sangrentas e prolongadas guerras civis que dilaceraram Angola e Moçambique.

Pensamento do dia

Israel não é um estado judeu. Israel é um estado sionista. Sionismo não é Judaísmo. Sionistas não são Judeus. Os Judeus lutam contra o Sionismo. O inimigo dos Judeus não é o povo palestiniano. Os inimigos dos Judeus são os Sionistas e Israel. Antes da fundação de Israel, os Judeus viviam pacificamente na vizinhança de Muçulmanos e de Cristãos nos territórios palestinianos. Os Sionistas chegaram e esta amizade acabou. Se queres o bem dos Judeus, deixa de apoiar Israel. Apoiar Israel prejudica o povo judeu.

Torah Judaism

Pensamento do dia

Quando já morrem mais crianças diariamente em Gaza do que morriam em Auschwitz durante o Holocausto, faz algum sentido proibir comparações directas entre nazismo e sionismo?

O maior antissemita nos tempos que correm é, não haja dúvidas, o estado de Israel. Povos irmãos que a religião e a história separaram, os árabes da Palestina não são menos semitas do que os judeus que voltaram à terra dos seus ancestrais.

Alguém ainda tem dúvidas de que esta guerra não é sobre o Hamas, que se erguerá das cinzas de Gaza alimentado pelos sobreviventes do genocídio clamando por vingança, mas a continuação do projecto neocolonial do Grande Israel, que passa pela desumanização dos árabes palestinianos, o confisco da sua terra e a destruição, no terreno, de tudo o que evoque e testemunhe a ligação ancestral do povo à terra onde sempre viveu?

Quando os agricultores param a Europa

Para lá do artificialismo dos conflitos geracionais e identitários, a velha luta de classes subsiste no mundo pós-industrial. A vaga de protestos dos agricultores europeus é disso um bom exemplo, por muito que os media tentem desviar o foco do essencial : proprietários e pequenos empresários agrícolas lutam para não serem reduzidos à condição de assalariados rurais, engolidos na voragem do agro-negócio, enquanto os poderes dominantes na UE põem em causa os tradicionais equilíbrios da PAC, cobiçando os alimentos baratos da Ucrânia e da América do Sul.

Que relação existe entre o mega-protesto dos agricultores europeus, o veganismo, os mortos e estropiados na guerra da Ucrânia, a transição verde na Europa e a catástrofe agrícola e ambiental no Brasil? A historiadora Raquel Varela demonstra como, para entendermos e nos orientarmos no mundo em que vivemos, a História continua a funcionar melhor do que qualquer GPS de última geração.

A transição do feudalismo ao capitalismo só é possível com a expropriação dos camponeses, que passam a assalariados agrícolas de grandes propriedades. Estas dores de parto geram revoltas épicas, com efeitos de arrastamento para toda a sociedade. Não há mi-mi-mi e negociações delicadas, é com foices no século XIX e tratores no XX. Lutam a sério. Lutam com as armas de trabalho.

A PAC (Política Agrícola Comum) é o instrumento europeu mais bem sucedido de garantir expropriação sem expropriação, ou seja, a agricultura tornava-se capitalista, produzindo com recurso a técnicas intensivas, culturas escolhidas (leite e cereais), mas os agricultores recebiam subsídios para manter uma quantidade razoável de pequenos e médios agricultores no campo, evitando as suas revoltas, lado a lado com as grandes explorações. A tese mais importante sobre isto é de um historiador social democrata, europeista convicto, e sério, Kiran Patel, com quem trabalhei em Munique, foi ele que me chamou a atenção para este facto essencial – a PAC foi a contenção dos camponeses e só ela tornou possível a UE porque evitou as revoltas (pode ser lido no seu livro Project Europe).
Assim, a mais capitalista das explorações, propriedade de bancos, convive na Europa, com o pequeno e médio agricultor.

A queda da taxa de lucro das empresas na Europa, depois de 2008, levou-as em busca de uma nova fase de expropriações, agora só há lugar para as grandes corporações, querem arrasar com o que resta dos pequenos agricultores, abrindo o mercado ucraniano (para quem tinha dúvidas fica claro o objectivo “democrático” no apoio à guerra na Ucrânia, é que as terras da Ucrânia ocidental foram vendidas em 2019 por Zellensky às corporações norte-americanas e europeias) e o Mercosul, onde países como o Brasil têm 40% da população a passar fome mas são chamados a virar toda a produção para o mercado europeu, com soja, por exemplo, que alimenta a carne na Europa.

Enquanto não convencem os europeus todos a ser vegetarianos – como se o consumo de proteína animal não fosse essencial ao cérebro – e martelam que comer animais faz mal à saúde e à alma, fazem dos europeus a carnificina dos lucros, a UE/corporações económicas, aqui pilotados pela líder de direita alemã e ultraliberal Ursula, decretam que os produtos da Ucrânia entram sem taxas, diminuem as do Mercosul (Brasil e Argentina), e fazem entrar produtos sem garantias e controlo sanitário assegurado do Norte de África, enquanto aqui exigem aos agricultores controles burocráticos insustentáveis e kafkianos. Ah! Claro, tudo isto em nome da “transição verde”, “ecologia” e “sustentabilidade”, as palavras que Ursula, enquanto desembolsa 50 mil milhões de euros dos nossos imposto para armamento à Ucrânia – destruída – usa mais, mais guerra mas sempre chamando-lhe sustentabilidade e democracia.

A tentativa de expropriar os camponeses teve uma reacção em cadeira gigante, chama-se – é preciso deixar de ter medo das palavras, se não não se explica nem compreende a sociedade – luta de classes. Ontem houve luta de classes, e os de cima ficaram ansiosos, recuaram nas leis, despejara milhões em poucas horas para parar os tratores de avançar sobre as capitais, onde os accionistas de bancos comem carne do lombo com trufa negra e champanhe. Ursula quer lucros para capitalizar a terra, são os Bancos e os seus accionistas que querem ser donos das terras. Os agricultores pararam a Europa em resposta, em apenas 1 dia, toda a Europa parou. Nenhum lei contra o corte de estadas foi acionada porque como dizia o mestre Howard Zinn, historiador, “se queres quebra a lei fá-lo com pelo menos 2 mil pessoas”. Não querem virar assalariados agrícolas, mais uns milhares de homens e mulheres a trabalhar como nepaleses, escravos apinhados em contentores, é contra isto que lutam, contra a sua proletarização.

Nunca Mais!

O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, foi ontem assinalado de uma forma algo envergonhada pelo Ocidente. Com os olhos do mundo colocados na mega-operação de limpeza étnica e genocídio a decorrer em Gaza, com os descendentes das vítimas do Holocausto nazi convertidos em protagonistas da nova vaga de anti-semitismo, desta feita contra os semitas palestinianos, e tudo isto a ser feito com a complacência, em muitos casos a cumplicidade da hipocrisia ocidental, é preciso muita cara de pau para continuar a afirmar “Nunca Mais!” Porque o nunca mais tem de ser para todos.

Recupero palavras de Hajo Meyer e de 350 outros sobreviventes do Holocausto publicadas há dez anos, mas que parecem ter sido escritas hoje. Bastará substituir os quase dois mil mortos de então pelos mais de vinte mil que a actual agressão a Gaza já conta. Porque o racismo, o apartheid, a desumanização e o genocídio exercidos pelo estado israelita contra os palestinianos não nasceram, como alguns nos querem fazer crer, a 7 de Outubro de 2023. São o lado negro da história de Israel, um projecto colonialista que espalha a desumanidade, a destruição e a morte na Palestina em nome da insana conquista de território.

Como sobreviventes judeus e descendentes de sobreviventes e vítimas do genocídio nazi, condenamos inequivocamente o massacre de palestinianos em Gaza e a ocupação e colonização em curso da Palestina histórica. Condenamos ainda os Estados Unidos por fornecerem a Israel o financiamento para levar a cabo o ataque, e os Estados ocidentais em geral por usarem a sua força diplomática para proteger Israel da condenação. O genocídio começa com o silêncio do mundo.

Estamos alarmados com a desumanização extrema e racista dos palestinianos na sociedade israelita, que atingiu o ponto mais alto. Políticos e especialistas do Times of Israel e do Jerusalem Post apelaram abertamente ao genocídio dos palestinianos e israelitas de direita estão a adoptar insígnias neonazis.

Além disso, estamos revoltados e indignados com o abuso que Elie Wiesel faz da nossa história nessas páginas que promovem grosseiras falsidades, usadas para justificar o injustificável: o esforço massivo de Israel para destruir Gaza e o assassínio de quase 2.000 palestinianos, incluindo muitas centenas de crianças. Nada pode justificar o bombardeamento de abrigos da ONU, casas, hospitais e universidades. Nada pode justificar a privação de eletricidade e água às pessoas.

Temos de erguer as nossas vozes colectivas e usar o nosso poder coletivo para pôr fim a todas as formas de racismo, incluindo o genocídio em curso do povo palestiniano. Apelamos ao fim imediato do bloqueio de Gaza. Apelamos ao boicote económico, cultural e académico total a Israel. “Nunca mais” deve significar “Nunca mais para ninguém”.

Traduzido daqui.

Pensamento do dia

Apoiar Israel no genocídio do povo palestiniano é ser anti-semita.

Pois os judeus israelitas são na realidade europeus, da Polónia e de outras partes, pretendendo ser semitas, enquanto os palestinianos são verdadeiramente semitas.

Inspiração daqui.

Leituras: Os mitos sobre Israel – e o caminho da Paz

Quando se completam três meses após os violentos ataques terroristas do Hamas e a resposta, ainda mais violenta e sanguinária, do exército israelita, convido os leitores a uma reflexão sobre um conflito que parece eternizar-se e cuja natureza é facilmente incompreendida: a chave para essa compreensão não são as rivalidades e ódios religiosos – a convivência no solo palestino dos crentes das três religiões do Livro foi quase sempre pacífica ao longo da História, sendo a intolerância e a violência, regra geral, trazidas do exterior – nem tão pouco o tão impropriamente chamado anti-semitismo: tanto árabes como judeus palestinianos são, do ponto de vista étnico, predominantemente semitas. Já o mesmo não se poderá dizer de todos os imigrantes que, alegando origens judaicas, se vieram a instalar nas últimas décadas na região, à medida que os árabes vão sendo presos, mortos ou expulsos das suas terras.

No âmago do conflito está, assim, um projecto colonial. Não o neocolonialismo típico da segunda metade do século XX, assente na exploração económica e na troca desigual, mas o colonialismo clássico, de povoamento do território por invasores, enquanto a população local vai sendo expulsa, confinada ou usada como mão-de-obra barata pelos colonizadores, num processo com muitas semelhanças ao regime de apartheid que vigorou na África do Sul dominada pela minoria branca. Na sua obra Dez Mitos Sobre Israel, Ilan Pappé, um historiador israelita corajoso e desalinhado do sionismo, conseguiu a proeza de, num livro publicado em 2017, nos dar os elementos-chave para a compreensão do que, em 2024, acontece na Palestina. Ajuda-nos a vislumbrar, se tal é ainda possível, o desejável caminho para a paz. E a compreender que uma Palestina livre para todos os palestinianos, sem discriminações étnicas ou religiosas seria também a libertação, para os povos europeus, dos horrores que ensombram o seu passado.

(…) Da perspetiva do colonia­lismo de povoamento, acontecimentos como a ocupação da Margem Ocidental e da Faixa de Gaza, os Acordos de Oslo e a retirada israelita de Gaza, em 2005, fazem parte da estratégia de Israel de se apoderar do máximo possível da Palestina com o mínimo possível de palestinianos. Os meios para a prossecu­ção deste objetivo têm mudado com o passar do tempo, mas são o principal combustível que alimenta o conflito.

Foi assim que a ligação horrível entre as lógicas da desumanização e da eliminação, tão evidentes na difusão mundial do colonialismo de povoamento europeu, chegou aos Estados autoritários do Médio Oriente. Manifestou-se implacavel­mente, entre muitos outros exemplos, na destruição dos curdos por Saddam Hussein, nas operações punitivas lançadas pelo regime de Assad, em 2012, e nas operações da oposição ao regime sírio: o exemplo mais grave foram as políticas genocidas do Estado Islâmico.

A barbarização das relações humanas no Médio Oriente só pode ser travada pelos próprios habitantes da região, mas estes devem ser ajudados pela comunidade internacional. A região deve regressar ao seu passado relativamente recente, quando o princípio orientador era «viver e deixar viver». Não é possível debater seriamente o fim dos abusos dos direitos humanos no Médio Oriente sem falar nos cem anos de abu­sos dos direitos humanos na Palestina. Estas duas questões estão intimamente ligadas. O excecionalismo do movimento sionista e, mais tarde, de Israel tornam ridículas as críticas do Ocidente aos abusos dos direitos humanos no mundo árabe. Todo e qualquer debate sobre o abuso dos direitos huma­nos dos palestinianos necessitará de incluir a compreensão do desfecho inevitável de projetos de colonialismo de povoa­mento como o sionismo. Os colonos judeus passaram a ser um elemento orgânico e integral da Palestina. Não podem ser nem serão removidos. Devem fazer parte do futuro, mas não na base da opressão e da expropriação continuadas dos palestinianos.

Desperdiçámos anos a falar da solução dos dois Estados como se tivesse alguma relevância para a questão referida anteriormente, mas necessitámos desse tempo para persuadir os judeus israelitas e o mundo de que, quando se funda um Estado — mesmo com uma cultura florescente, uma próspera indústria de alta tecnologia e forças armadas poderosas — com base na expropriação de terceiros, a sua legitimidade moral será sempre questionada. Reduzir exclusivamente a questão da legitimidade aos territórios que Israel ocupou em 1967 nunca resolverá a questão no cerne do problema. Uma eventual retirada israelita da Margem Ocidental seria obvia­mente um bom contributo, mas existe a possibilidade de Israel passar a policiar a região como tem policiado a Faixa de Gaza desde 2006. Se assim for, em vez de promover o fim do con­flito, irá apenas alterar as suas características.

Para se tentar genuinamente encontrar uma solução, haverá que ter em conta camadas profundas de história. Depois da Segunda Guerra Mundial, o sionismo teve carta branca para se tornar um projeto colonialista numa época — em que o colonialismo começou a ser rejeitado pelo mundo — porque a criação de um Estado judaico oferecia à Europa, em parti­cular à Alemanha Ocidental, uma saída fácil dos piores exces­sos do antissemitismo. Israel foi o primeiro país a reconhecer publicamente a existência de uma «nova Alemanha» e, em troca, recebeu muito dinheiro e, mais importante ainda, carta branca para transformar a Palestina em Israel. O sionismo apresentou-se como a única solução para o antissemitismo, mas tornou-se a principal razão da sua presença continuada. A «negociata» não extirpou o racismo e a xenofobia que ainda residem no coração da Europa e que deram origem ao nazismo no continente e a um colonialismo brutal no resto do mundo. Agora, este racismo e esta xenofobia estão apontados aos muçulmanos e ao islão e, como estão intimamente ligados à questão israelo-palestiniana, talvez diminuam quando se encontrar uma resposta genuína para a mesma.

Merecemos um fim melhor para a história do Holocausto. Poderá envolver uma forte Alemanha multicultural que mos­tra o caminho ao resto da Europa, uma sociedade norte-americana que lida corajosamente com os crimes raciais do seu passado, cujo impacto ainda se faz sentir, ou um mundo árabe que elimina a sua barbárie e desumanidade…

Nada disto acontecerá enquanto continuarmos a cair na armadilha de tratar mitologias como verdades. A Palestina não estava vazia e o povo judeu tinha pátrias; a Palestina não foi «redimida», foi colonizada; em 1948, os palestinianos não partiram voluntariamente, foram expropriados. Os povos colonizados têm o direito — mesmo segundo a Carta das Nações Unidas — de lutar pela sua libertação, mesmo com um exército, e a vitória está na criação de um Estado demo­crático que inclui todos os seus habitantes. Esperemos que o debate acerca do futuro, liberto dos dez mitos sobre Israel, contribua não só para a paz em Israel e na Palestina mas também para a Europa encerrar apropriadamente o capítulo dos horrores da Segunda Guerra Mundial e da era negra do colonialismo.

Ilan Pappé, Dez Mitos sobre Israel, Edições 70, Lisboa, 2022 (pp.229-231)

Leituras: Carlos Matos Gomes – A derrota do Deus do Ocidente

Fugindo ao rótulo fácil de anti-semitismo, e quando a História e a Religião judaicas são continuamente invocadas em defesa do sionismo, algum pensamento crítico sobre a natureza do judaísmo e dos sempre proclamados “valores ocidentais” torna-se fundamental…

(…) Os autores do guião da ação do Estado de Israel em Gaza e na Cisjordânia e os especialistas contratados para a analisar pretendem inculcar a ideia de que a atual ação militar contra as populações palestinianas faz parte do “direito de defesa de Israel”, pelo que o mundo estaria perante um facto recorrente, apenas um pouco mais sangrento, mas sem que nada de essencial tenha sido alterado. O discurso dominante, mesmo quando especializado, encontra-se delimitado pela análise da arte da guerra: aniquilação do inimigo através do genocídio, ou por uma conjugação de massacre e sujeição dos vencidos aos princípios e leis dos vencedores.

(…)

Há, contudo, uma outra análise que deve (devia) ser feita e que remete para a profundidade das raízes desta ação de Israel — da vingança histórica e milenar que ela materializa contra o Ocidente. O Ocidente está a dar a oportunidade de ouro para a realização do mais extraordinário ato de vingança contra si próprio desde a instauração do cristianismo como religião do império romano decretado no século IV por Constantino, dentro do princípio cujus regio, ejus regio — a religião do príncipe é a religião do país.

(…)

O Estado de Israel tem o judaísmo por infraestrutura ideológica. Pelo seu lado, o Ocidente, a partir do édito de Milão e da “conversão” de Constantino, validou o cristianismo como religião oficial, colocando o judaísmo na situação de seita responsável pela morte e sacrifício do novo Deus de Roma. Durante séculos, até ao nazismo, os judeus foram tidos no imaginário ocidental como um povo-vítima, pacífico, perseguido, estigmatizado, que se deixava sacrificar sem luta. O judaísmo era uma religião de mansos que viviam em guetos e aí celebravam os seus rituais. O Ocidente ignorou a violência genética do judaísmo e do seu deus, Javé. Não pareceu surpreendido com o terrorismo que os judeus praticaram logo que tiveram a oportunidade de reunirem uma massa critica adequada primeiro no protetorado britânico da Palestina, que evoluiria para Estado de Israel sob os auspícios das Nações Unidas, atribuindo as práticas dos seus grupos terroristas à necessidade de defesa e ao seu direito de existência. Não era: o judaísmo é geneticamente violento, por ser exclusivista, racista e negacionista do outro, por se assumir como a prova de que é a ideologia de um povo eleito, superior.

(…)

Segundo o Antigo Testamento da Bíblia, pelo qual se regem os judeus, o pacto entre eles e Javé, o seu deus, teria começado com Abraão, há cerca de 4 mil anos. Este foi chamado por Deus para deixar a cidade de Ur, na Mesopotâmia e ir fundar uma nova nação num terra desconhecida, a Terra Prometida, que seria chamada de Canaã. O deus que apareceu a Abraão rompia com a tradição politeísta dos gregos, e colocava-se na posição omnipotente de exigir o que quisesse. No caso de Abraão, ordenou-lhe que sacrificasse o seu filho Isaac como prova de fé, isto é, de sujeição.

O Javé do Antigo Testamento (o Pentateuco, para os judeus) não tem semelhanças com o pai protetor que mais tarde o cristianismo iria propagar como sendo o seu Deus. Javé é um deus brutal, parcial e assassino, um deus de guerra, que seria conhecido como Javé Sabaoth, Deus dos Exércitos. Manda pragas aos egípcios, mostra-se até arrependido da sua criação, como quando ordenou a morte por afogamento de toda a humanidade através do dilúvio, do qual só escapou a família de Noé e os animais que colocou na arca. Javé, o deus dos judeus, está mais preocupado em ameaçar a raça humana para que ela não se desvie das instruções que entregou a Moisés do que em criar condições de paz e de harmonia, de felicidade e de justiça. Javé é passionalmente partidário do seu povo eleito, os judeus, e tem pouca misericórdia pelos não favoritos. É uma divindade tribal.

A narrativa de continuidade entre o judaísmo e o cristianismo foi destruída por Paulo de Tarso, ao estabelecer que o cristão se justificava pela fé e não pela obediência à lei judaica, nem à sua ascendência judaica, que os gentios, os não judeus, se podiam converter, abrindo o cristianismo a novos espaços. Paulo tirou Jesus Cristo da pequena gaiola de um messias para o povo hebreu, ou de mais um profeta, transformando-o num salvador de todos os povos. Javé, esse continuou ligado apenas ao povo hebreu, enquanto Cristo ganhava um caráter universal. Javé continuou a ser o deus carrancudo dos judeus e o cristianismo transmitiu a imagem de um deus bem mais amistoso que Javé.

Na tradição judaica estava muito claro que o homem devia temer a Deus acima de tudo. Com o cristianismo, a mensagem passa a ser amar a Deus acima de tudo. A diferença entre o judaísmo e o cristianismo é a mesma entre temer e amar. É esta escolha que está em causa com a ação de Israel na Palestina e em que os dirigentes ocidentais estão a tomar o partido do Deus do medo, defensor de um pequeno povo de eleitos contra a humanidade. O “direito de Israel a defender-se” tem o sentido de direito divino a destruir ou subjugar todos os que não são os eleitos, incluindo nós, os que lhe fornecemos as armas e a complacência.

O que o Estado de Israel está a realizar perante o mundo e em nome do Ocidente é a morte do Deus dos cristãos, do Deus que, apesar das violências cometidas em seu nome, permitiu que surgisse um humanismo cristão, que produziu um Santo Agostinho, um São Francisco, que permitiu a recuperação do conceito de um deus moral, em oposição ao deus brutal.

A vitória nas guerras foi sempre a vitória dos deuses dos vencedores. A vitória de Israel na Palestina é a vitória do deus dos judeus sobre o deus dos muçulmanos, mas também sobre o deus dos cristãos. O deus moral representado por Cristo podia oferecer uma via para que as sociedades cooperassem, evitando ofender um poder superior atento ao seu comportamento em relação aos demais. Javé, o deus dos judeus exclui o compromisso. E essa exclusão é evidente no discurso dos dirigentes judaicos.

Mesmo para quem, como eu, entende a religião apenas como uma dimensão simbólica do comportamento humano e a religiosidade como um sistema produtor de normas e culturas inerentes a qualquer sociedade, quer a religião, quer a religiosidade são fatores constitutivos e estruturantes da vida humana. Não me é, pois, indiferente, muito pelo contrário, ser regido pelas normas de Javé ou de Cristo, de ser regido pelo Velho Testamento, pelo Alcorão ou pelo Novo Testamento. Não é a mesma coisa ser não crente numa divindade numa civilização que tenha por deus Javé ou Alá, entre judeus e muçulmanos, ou sê-lo numa civilização que tenha Cristo por referência.

Impressiona-me a ausência de pensamento no interior do cristianismo sobre o conflito judaico-cristão, que coloca em causa a nossa civilização. Preocupa-me que estejamos a ir atrás do canto das sereias do conflito com os muçulmanos, encadeados que estamos pelo domínio dos poços de petróleo do Médio Oriente e dos eixos de ataque à Rússia, a primeira barreira a ser ultrapassada para os Estados Unidos enfrentarem a China. Entendo ser uma cegueira perigosa e criminosa o Ocidente abdicar do seu Deus e dos seus valores, trocando-o por Javé, o velho carrancudo, vingador e sem piedade. (…)

Carlos Matos Gomes, A derrota do Deus do Ocidente