A professora que não gosta de ler

prof-isaA professora de português que deu a primeira aula da telescola deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito, e está a fazer um esforço para ler um livro no Verão. Como professora e mãe também senti vergonha alheia. Na realidade há muito que acho que a maioria das crianças quando entra na escola sofre um processo acelerado de perda da curiosidade, vitalidade, interesse e educação que levavam da infância. O burnout docente contagiou as crianças, o desinteresse pega-se, contagia. O mesmo retrocesso se dá com os professores, entram na escola muitos a pensar que vão ser educadores, entram rapidamente em burnout quando percebem que vão ser operadores de uma linha de montagem – crianças – para um mercado de trabalho desqualificado.

A confissão da professora Isa, uma das mais conhecidas e mediáticas docentes que o #EstudoEmCasa trouxe aos lares portugueses, incomoda muitos dos que se interessam pelo mundo da Educação. Afinal de contas, espera-se que a escola, além de ensinar a ler e a escrever, seja capaz de despertar também o gosto pela leitura e a boa literatura. Mas como se pode transmitir algo que não se tem?…

Claro que existem aqui várias condicionantes. O apelo da leitura concorre com uma miríade de outras actividades capazes de se tornar, no imediato, mais sedutoras e prazerosas. Os professores do primeiro ciclo são generalistas, é natural que alguns não gostem muito de ler, assim como outros se sentirão menos entusiasmados, por exemplo, com as matemáticas, não deixando uns e outros de exercer bem a profissão. E sendo o ofício de ensinar, por diversas razões, cada vez menos atractivo, é natural que os candidatos aos cursos de formação de professores surjam menos motivados e revelem um perfil cada vez mais distante da imagem idealizada do professor.

De facto, há um aspecto do problema que Raquel Varela explica muito bem e que passa pela proletarização da classe docente e pela desqualificação do seu labor profissional. O professor deveria ser visto como um profissional autónomo e criativo, um trabalhador intelectual especializado que constrói e aplica criticamente o seu próprio saber. Mas quantos docentes portugueses se conseguem ver hoje, a si mesmos, dessa forma?

A professora de português que não gosta de ler não é um caso, mas um problema disseminado na educação – a proletarização dos docentes, transformados em mediadores de entrega de conteúdos pré feitos, desprovidos e expropriados do seu ser-pensar-intelectual. No nosso estudo sobre o trabalho docente era visível a desintelectualização da profissão e a falta de consciência desse processo. Quando nós dissemos aos docentes que eles eram intelectuais expropriados uma larga parte ficava impressionado, “então eu devia ser um intelectual”? pensavam com estranheza. Insistimos que para não haver burnout eles tinham que se assumir como sapateiros e não como vendedores de sapatos. Como produtores de conteúdos e não entregadores de conteúdos. E tinham que lutar por isso, não havia e não há outra forma de driblar a depressão, perda de qualidade e sentido do trabalho que não seja lutar contra estas condições de trabalho, por mais ioga e auto ajuda que façam. 

Reflectindo sobre o mesmo tema, Bárbara Wong nota que o problema se evidencia logo nas ESEs e universidades onde se formam professores: o desinteresse, a falta de entusiasmo, o derrotismo estarão, segundo a jornalista do Público, generalizados entre os futuros professores, o que afectará a forma como irão desenvolver o seu trabalho. Este é um problema tanto dos estudantes como das instituições que os formam, fechadas nas suas torres de marfim e alheias à realidade actual das escolas e dos seus próprios alunos. Pela sua transversalidade e amplitude, não é difícil concordar que é, em boa verdade, um problema de toda a sociedade.

Não é fácil encontrar culpados. Temos faculdades vetustas e que se julgam imunes aos preconceitos que existem em relação às ciências sociais e humanas, não os combatendo, convencidas que estão num Olimpo inatingível — há que lembrá-las que os deuses morreram. Temos escolas básicas e secundárias que trucidam professores, afogando-os em trabalho burocrático, em vez de lhes darem espaço para criarem, para fazerem alguma coisa em benefício dos seus alunos. Temos pais que acham graça à função decorativa do livro, que vivem em casas onde o ecrã da televisão é panorâmico, tal como o do smartphone. Temos filhos que “não gostam de ler”, porque ninguém lhes pôs um livro na mão nem no coração. Temos um Plano Nacional de Leitura activo, muito activo, com imensos projectos, mas cujos resultados pouco se vêem porque, afinal, os livros são bons para ter, mas não para ler. Temos uma sociedade que reflecte isso mesmo: bom é ter, não é ser.

2 thoughts on “A professora que não gosta de ler

  1. E, no entanto, lê-se muito : As Aprendizagens Essenciais e o Perfil dos alunos, as planificações, as grelhas , os powerpoints, as circulares e outros documentos do género da Dgeste, do JNE, do ME, os PAMs e PCTs e PTTs, o 54º e o 55º, as actas, os balanços e relatórios, os tutoriais e cronogramas das webinares, as medidas selectivas e as universais, os memorandos, as não sei quantas páginas das normas de exame.

    Já referi as grelhas. As grelhas mereceriam todo um discurso em solo. E há grelhas para todos os gostos e todos os anos reformula-se mais um bocadinho dessas grelhas, não vá dizer-se que não se faz nada. As grelhas só têm um competitor: os organogramas cheios de setas para a direita, a esquerda, confluindo ao meio e depois tudo circulado por setas para mostrar que toda a informação e conceitos estão interligados e vão dar ao mesmo sítio, uma espécie de contrafação dialéctica.

    Chegados aqui, os professores são estimulados a relerem o que fizeram o ano anterior- há que dar um jeitinho nas grelhas e organogramas. Horas e horas, todos os anos, a acrescentar e a cortar almejando a Perfeição. Todos os anos há mais. E a meio de cada ano também.

    Compreende-se que falte tempo para a leitura.

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