Leituras: Mindfulness, a nova espiritualidade capitalista

mcmindfulness.jpgProfetizando que o seu híbrido de ciência e disciplina meditativa “tem o potencial de desencadear um renascimento universal ou global”, o inventor da Redução do Stress Baseada em Mindfulness (MBSR), Jon Kabat-Zinn, tem ambições maiores do que vencer o stress. A atenção plena, proclama ele, “pode ​​realmente ser a única esperança que a espécie e o planeta têm para sobreviver nos próximos duzentos anos”. […]

Eu sou céptico. Qualquer coisa que ofereça sucesso na nossa sociedade injusta sem tentar mudá-la não é revolucionária – apenas ajuda as pessoas a aguentar. No entanto, também pode estar a piorar as coisas. Em vez de encorajar a acção radical, diz que as causas do sofrimento estão desproporcionalmente dentro de nós, não nos quadros políticos e económicos que moldam a maneira como vivemos. E, no entanto, os fanáticos do mindfulness crêem que prestar mais atenção ao momento presente, sem julgar, tem o poder revolucionário de transformar o mundo inteiro. É pensamento mágico baseado em esteróides.

Não me entendam mal. Há certamente dimensões positivas na prática do mindfulness. Desenvolver a ruminação mental ajuda a reduzir o stress, assim como a ansiedade crónica e muitas outras doenças. Tornar-se mais consciente das reacções automáticas pode tornar as pessoas mais calmas e potencialmente mais gentis. A maioria dos promotores do mindfulness é boa gente, e tendo pessoalmente conhecido muitos deles, incluindo os líderes do movimento, não tenho dúvidas de que seus corações estão no lugar certo. Mas essa não é a questão aqui. O problema é o produto que estão a vender e como ele foi empacotado. Mindfulness nada mais é do que treino básico de concentração. Embora derivado do budismo, ele foi despojado dos ensinamentos sobre a ética que o acompanhavam, assim como do objectivo libertador de dissolver o apego a uma falsa auto-estima ao mesmo tempo que promove a compaixão por todos os outros seres.

O que resta é uma ferramenta de auto-disciplina, disfarçada de auto-ajuda. Em vez de libertar os praticantes, ajuda-os a ajustarem-se às condições que causaram os seus problemas. Um movimento verdadeiramente revolucionário procuraria derrubar esse sistema disfuncional, mas o mindfulness serve apenas para reforçar a sua lógica destrutiva. A ordem neoliberal impôs-se furtivamente nas últimas décadas, ampliando a desigualdade na busca da riqueza corporativa. Espera-se que as pessoas se adaptem ao que este modelo exige delas. O stress tem sido patologizado e privatizado, e o ónus de o gerir é remetido para os indivíduos. Aqui, os vendedores da atenção plena entram em acção para salvar o dia. […]

Os defensores do mindfulness, talvez inconscientemente, estão fornecendo apoio ao status quo. Em vez de discutir como a atenção é monetizada e manipulada por empresas como Google, Facebook, Twitter e Apple, eles localizam a crise nas nossas mentes. Não é a natureza do sistema capitalista que é inerentemente problemática; pelo contrário, é o fracasso dos indivíduos em ser conscientes e resilientes numa economia precária e incerta. Então eles vendem-nos soluções que fazem de nós capitalistas conscientes e contentes.

A ingenuidade política envolvida é impressionante. A revolução que está a ser promovida ocorre não através de protestos e lutas colectivas, mas nas cabeças de indivíduos atomizados. “Não é a revolução dos desesperados ou marginalizados na sociedade”, observa Chris Goto-Jones, um crítico académico das ideias do movimento, “mas sim uma ‘revolução pacífica’ liderada por americanos brancos de classe média”.

Os objectivos não são claros, além da paz de espírito nos nossos mundos privados.

Praticando mindfulness, a liberdade individual é supostamente encontrada dentro da “consciência pura”, imune a influências externas corruptoras. Tudo o que precisamos fazer é fechar os olhos e controlar a nossa respiração. E esse é o ponto crucial da suposta revolução: o mundo está mudando lentamente – um indivíduo consciente de cada vez. Essa filosofia política lembra estranhamente o “conservadorismo compassivo” de George W. Bush. Retirado para a esfera privada, o mindfulness torna-se uma religião do eu. A ideia de uma esfera pública está a ser corroída, e qualquer efeito da compaixão acontece apenas por acaso. Em resultado, nota a teórica política Wendy Brown, “o corpo político deixa de ser um corpo, mas é, em vez disso, um grupo de empresários e consumidores individuais”.

O mindfulness, tal como a psicologia positiva e a indústria da felicidade mais ampla, despolitizou e privatizou o stress. Se estivermos insatisfeitos por estarmos desempregados, perdermos o nosso seguro de saúde e vermos nossos filhos incorrerem em enormes dívidas por meio de empréstimos universitários, é nossa responsabilidade aprender a ser mais conscientes. Jon Kabat-Zinn assegura-nos que “a felicidade é um trabalho interior” que simplesmente requer que vivamos o presente momento de forma consciente e, propositadamente, sem julgamentos. Outro promotor vocal da prática meditativa, o neurocientista Richard Davidson, afirma que “o bem-estar é uma habilidade” que pode ser treinada, como exercitar o bíceps no ginásio. A chamada revolução do mindfulness aceita humildemente os ditames do mercado. Guiado por um ethos terapêutico que visa melhorar a resiliência mental e emocional dos indivíduos, ela assume as suposições neoliberais de que todos são livres para escolher suas respostas, gerir emoções negativas e “florescer” através de vários modos de auto-ajuda. Enquadrando a sua oferta desta forma, a maioria dos professores de mindfulness rejeita um currículo que questione criticamente as causas do sofrimento nas estruturas de poder e nos sistemas económicos da sociedade capitalista.

Ronald Purser, McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality (2019). Selecção e tradução de António Duarte.

 

6 thoughts on “Leituras: Mindfulness, a nova espiritualidade capitalista

  1. É isso mesmo.
    Pode tornar se uma espécie de droga- liberta stress e ansiedade individuais mas tende a destressar a mente colectiva para o que nos rodeia. Há guerras, injustiças, estou desempregado, pagam uma miséria pelo meu trabalho?
    Tudo tranquilo. Medita que isso hpassa…….e ficas quietinho e contentando.

    Gostar

  2. Poderia me colocar como suspeito para falar de “mindfulness”, uma vez que sou praticante, entusiasta e pesquisador do modelo como técnica de ensino.1
    Deveria até mesmo ler o livro para fazer uma crítica embasada, mas escrevo no impulso do descontentamento com o artigo.
    Como diriam os comediantes do “Choque de cultura”: “Pensou errado…”2
    Apesar do “morde-assopra” do terceiro parágrafo, o artigo (acredito que seja reflexo do livro), desconhece que os princípios da atenção plena pode levar a uma consciência sobre a sustentabilidade de todo o sistema econômico, muitas pessoas que praticam o “mindfulness” acabam também por adotar o “minimalismo”3 como forma de vida e de consumo, a postura minimalista é por si só anticonsumista (o que é uma pedra no sapato do capitalismo), os praticantes mais radicais chegam até mesmo a se desfazer de suas casas na cidade e partirem para o campo para viver uma vida menos estressada. Ademais, mindfulness nos dá uma perspectiva melhor da nossa vida e do que estamos fazendo com ela.4
    Não sei o que prega o senhor Jon Kabat-Zinn (mas o nosso mundo está cheio de embusteiros, tem até “mecânica quântica aplicada a meditação”), só posso dizer que ele está colocando o produto dele na prateleira, compra quem quer, mas querer julgar todos os sabonetes, e sua função higiênica, por um que derrete rápido e cheira a fubá é jogar a criança fora com a água da bacia.
    Desculpe a revolta (embora revoltas possam levar a revoluções), mas a própria direita já provou, com as eleições dos EUA, Brasil e Brexit (entre outras), que se ocupa os espaços políticos dominando mentes.5
    Minha sugestão: Fizesse uma crítica direta ao senhor Jon Kabat-Zinn e sua tentativa de vender mindfulness como um sabonete qualquer!

    “A principal tarefa na vida é simplesmente esta: identificar e separar questões de modo que eu possa dizer claramente para mim mesmo quais são externas, fora do meu controle, e quais têm a ver com as escolhas sobre as quais eu, de fato tem o controle.”
    Epiteto (ou Epicteto) 55-135 d.C. Filósofo estoico

    “A juba do leão, a espuma que escorre da goela do javali e muitas outras coisas se observarmos detalhadamente, sem dúvida estão longe de ser belas, e, o entanto, por que derivam do fato de terem sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possui encanto; se nos apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais profunda sem dúvida, todos eles pareceriam sempre criaturas agradáveis.”
    Marco Aurélio 121-180 d.C – Filósofo estoico e Imperador de Roma

    “Não há nada novo debaixo do sol.” (Eclesiastes 1:9)

    1 ALVES, P. F.. A mediação como instrumento eficaz de aprendizagem. Estudos e experiências da meditação como prática educativa na escola. 2017.
    https://bibliotecadigital.ipb.pt/bitstream/10198/13615/3/Elisabete%20SilvaAtas_CMEA2016-1.pdf.
    2 CHOQUE DE CULTURA: PQ É TÃO BOM? #Meteoro

    3 Minimalismo: Tudo o que você precisa saber antes de adotar esta cultura
    https://manualdasecretaria.com.br/minimalismo/
    4 Bom Dia, Angústia! (Filosofia Estoica) | PEDRO CALABREZ | NeuroVox 030

    5 Privacidade Hackeada | Trailer oficial | Netflix

    Gostar

Comentar

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.