Falta democracia nas escolas – e confiança nos professores

Percebeu-se a desorientação do Governo com a explosão dos professores que combinou exaustão com indignação em consequência das políticas aplicadas entre 2006 e 2009. Foram dezassete anos. É espantoso como se ignorou – com arrogância, insensibilidade e hostilidade – os inúmeros sinais de um estatuto social desvalorizado, e sucessivamente humilhado, de uma profissão tão difícil e exigente. Estes governos (2015 e 2022) demonstraram um duplo descolamento da realidade, tal a inércia para enfrentar a crescente falta de professores que se previa há mais de uma década.

Debata-se causas e encontre-se caminhos livres de preconceitos. O mundo mudou e, acima de tudo, é imperativo que os professores reconstruam o ambiente democrático da escola. Use-se o adjectivo para o que é comum e público. Não se receie. A propósito, e como é fundamentada a crítica à falta de debate sobre a transformação da escola a pensar no futuro, a recuperação do clima democrático trará ambição, visão e governo.

E antes do mais, recorra-se a Confúcio. Quando perguntado, por Sima Quan, se era um homem culto e instruído, respondeu: – De modo nenhum, simplesmente descubro o fio da meada.

É nesse sentido que urge partir de quatro eixos – carreira, avaliação, gestão e burocracia – e discutir propostas sustentáveis com um ponto prévio: a carreira implicará investimento e as outras reduzirão despesa.

Fugindo à espuma dos acontecimentos e procurando novos ângulos de abordagem para as polémicas do momento, Paulo Prudêncio analisa os bloqueios desastrosos do poder político à classe docente, que conduziram tanto à sistémica falta de professores como à recente e avassaladora onda de greves e protestos. Para concluir que, se a reabilitação da carreira docente custará sempre mais dinheiro do que manter tudo como está, a resolução deste problema poderá reduzir despesa noutras vertentes, melhorando substancialmente a qualidade do sistema educativo. Contas bem feitas, o país terá muito mais a ganhar do que a perder com a valorização dos seus professores.

Na verdade, uma carreira horizontal, com um pleno desenvolvimento tornado acessível a todos os professores que cumpram zelosamente os seus deveres profissionais, sem quotas, vagas ou outros bloqueios artificiais, permitiria não só reduzir despesa mas também melhorar a qualidade do serviço educativo, as condições de trabalho nas escolas e os níveis de realização pessoal dos professores:

  • uma avaliação do desempenho formativa em vez de punitiva, centrada na reflexão crítica e na partilha de boas práticas, em vez do auto-elogio dos relatórios para avaliador ler;
  • a recuperação dos princípios da gestão democrática, colegial e participativa e do primado da gestão pedagógica sobre a administrativa, reposicionando a escola, em vez do mega-agrupamento, como unidade de gestão;
  • a desburocratização da organização escolar, substituindo a desconfiança sistémica em relação ao trabalho dos professores por uma relação de confiança assente na autonomia pedagógica e científica dos docentes e numa natural prestação de contas sobre o que se ensina e a forma como se avalia quando necessário.

Os bloqueios, as injustiças e a burocracia kafkiana em torno das progressões na carreira docente em Portugal não encontram paralelo nas carreiras profissionais dos países com que gostamos de nos comparar. A perversidade e a imprevisibilidade com que sucessivos governos gerem a profissão afastam da docência as novas gerações. Tal como se encontra organizada, a escola extenua e adoece os professores, a começar pelos mais comprometidos e dedicados. E não teria de ser assim. Será tão difícil entender o óbvio?…

A cobardia política dos “serviços mínimos”

Recupero, neste post, um texto aqui publicado em Julho de 2018, a propósito dos serviços mínimos decretados, na altura, à greve às avaliações. O que então escrevi mantém-se inteiramente actual; de então para cá, só se tem acentuado a tendência para a subversão dos princípios da democracia representativa, concedendo poderes públicos a órgãos não eleitos nem escrutináveis como “autoridades” disto e daquilo, “conselhos nacionais”, entidades reguladoras, corporações e, claro, colégios arbitrais…

tribunal-justica.jpgNum passado ainda não muito distante, sempre que uma greve se tornava demasiado incómoda para os grupos e interesses dominantes, lá tinha o governo de sujar as mãos, decretando a requisição civil dos trabalhadores grevistas.

Mas uma requisição civil tem custos políticos: implica o reconhecimento de que uma greve está a fazer mossa, que do lado patronal e/ou governamental não há capacidade de diálogo e negociação para ultrapassar o conflito e que, perante o extremar de posições, o poder político opta por recorrer ao argumento da força, perdendo a força da razão. Em democracia isto costuma, mais cedo do que tarde, pagar-se nas urnas.

A solução para este tipo de problemas tem passado, nas “democracias avançadas”, pela criação de mecanismos que, mantendo formalmente os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, obstaculizam e limitam o seu exercício efectivo, ao mesmo tempo que estabelecem um conjunto de estruturas burocráticas, corporativas e antidemocráticas que protegem os decisores políticos, caucionando, com fundamentos jurídicos, tecnocráticos ou financeiros, as opções políticas que os governantes não querem assumir.

Conselho Económico e Social, Conselho Superior das Finanças Públicas, Conselho Nacional de Educação: eis três exemplos, escolhidos entre os mais conhecidos e influentes, de verdadeiras gorduras do Estado que têm servido acima de tudo para caucionar más políticas e fabricar falsos consensos em diversas áreas governativas.

Os “colégios arbitrais” para decidir serviços mínimos inscrevem-se nesta mesma lógica de resguardar os decisores, dando à vontade política de fazer abortar a greve às avaliações a cobertura técnico-jurídica de um pseudo-tribunal onde um organismo do Governo, que é parte interessada, faz a “instrução” do processo. Onde não há advogados das partes e, em contrapartida, os “juízes” são ao mesmo tempo supostos representantes dos interesses em causa. Mas se a jurista que representa o governo não tem dúvidas do que lhe compete defender, o “representante dos trabalhadores” passa-se para o lado do patrão e subscreve a decisão unânime de impor os serviços mínimos.

Claro que este “consenso” contra os professores, tentando acabar administrativamente com a sua greve, porque interesses mais altos se levantam, se constrói subvertendo as leis vigentes […], fazendo-se “analogias” abusivas e impondo-se procedimentos sem cobertura legal.

[…]

A prazo, a luta por mais e melhor democracia passa por combater estas excrescências antidemocráticas na nossa sociedade. Em democracia deve imperar o primado da lei, a separação clara de poderes e o respeito pelos direitos dos cidadãos. Em caso de conflito, uma justiça célere, conduzida por tribunais independentes e com garantias eficazes de defesa para ambas as partes, deve garantir a correcta aplicação da lei. Com isso, dispensaríamos os “árbitros” que favorecem o adversário e poderíamos garantir, a cada “juiz jubilado”, o merecido usufruto da sua aposentação.

Já a ir, Bolsonaro?

Que vá pela sombra; não deixará saudades!

Independentemente de Lula da Silva ser o não o candidato ideal à esquerda e dos vícios e defeitos do Partido dos Trabalhadores – e a corrupção endémica não é caso de somenos – a verdade é que os quatro anos de bolsonarismo representaram, para o Brasil, uma degradação da vida social e política bem para além do imaginável. Retirar do poder este homem sem qualidades e a corja que juntou à sua volta era uma verdadeira prioridade nacional.

Tal como vimos com Trump nos EUA, também a permanência tóxica de Bolsonaro no poder por mais quatro anos seria uma ameaça à própria democracia brasileira. E este é o bem maior a preservar. A verdade é que, existindo democracia, o menos imperfeito dos sistemas políticos até hoje inventados, nenhum governo é definitivo, havendo sempre espaço para a contestação e a crítica, a alternativa e a mudança.

Mais um cartoon “roubado” ao Facetoons, do sempre inspiradíssimo Antero Valério!

A democracia vence a ditadura

A data de hoje pode passar despercebida aos comemoradores de eventos que se cingem às efemérides marcadas no calendário. Mas é significativa: o regime democrático inaugurado com a Revolução de Abril supera hoje, em duração, a ditadura, inicialmente militar, depois convertida no Estado Novo salazarista, que sucedeu ao conturbado período da Primeira República. Hoje, e não ontem, apesar de alguns apressados terem celebrado por antecipação.

17 500 dias vividos, de forma ininterrupta, em liberdade e democracia significam que a ditadura é já, para os cidadãos que ainda a viveram, uma distante memória. Para a grande maioria, a ditadura de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano é algo que conhecem apenas do que ouviram contar aos mais velhos ou aprenderam nas aulas, nos livros ou nos documentários de História: não podem recordar um tempo que não viveram.

Boa em si mesma, esta normalização da democracia encerra um perigo: o de darmos como adquirido algo que está longe de ser um resultado natural e irreversível da emancipação e do progresso da humanidade. Aproveitando fraquezas e momentos de crise, a ditadura e a barbárie são sempre potenciais ameaças, sobretudo de democracias relativamente jovens e pouco consolidadas. Na Europa, e nem é preciso olharmos para o caso extremo da Rússia ou para a guerra travada na Ucrânia, vemos o autoritarismo, a xenofobia, os populismos e extremismos a ganharem terreno de dia para dia.

É pobre uma democracia reduzida ao formalismo do voto – e uma elevada percentagem de eleitores portugueses nem nas eleições participam. Ela fortalece-se com uma activa participação política dos cidadãos e uma opinião pública forte e informada. Deve combater as desigualdades económicas e sociais, promover o acesso à cultura e garantir os direitos básicos à saúde, educação, habitação, emprego e segurança social a todos os cidadãos.

Quase a fazer 48 anos, a democracia portuguesa é ainda uma jovem. Terá, se os portugueses assim quiserem, um longo futuro à sua frente.

Imagem daqui.

Derrubar Putin

Que a invasão russa da Ucrânia não seria um passeio de colunas militares até à capital percebeu-se logo nos primeiros dias da ofensiva. O que é agora cada vez mais evidente é que a ofensiva também não tem o apoio da população, nem mesmo o de uma boa parte das elites do regime. Levado pela ambição e excesso de confiança, Putin parece ter avaliado mal as consequências desta aventura perigosa e de consequências trágicas.

Parece evidente que, mais do que ser parte do problema que criou, tornou-se ele próprio o problema: líder incontestado de um regime ditatorial corrupto e preso ao passado, incapaz de inspirar confiança e estabelecer relações sólidas com os seus vizinhos, minado pela corrupção e as oligarquias mafiosas.

Garry Kasparov, o antigo campeão mundial de xadrez que se tornou figura de referência na oposição ao putinismo, continua a pugnar por uma Rússia democrática que só será viável afastando o ditador que se perpetua no poder. A sua reflexão, traduzida e adaptada de uma sequência de tweets, é inspiradora; convida-nos a imaginar um novo e melhor futuro para a Rússia…

O preço a pagar pelo afastamento de Putin será elevado porque subiu sempre à medida que os seus actos foram fincando impunes. Esse preço será suportado por russos, americanos, e europeus. Mas a Ucrânia está a pagar com sangue e o seu sacrifício não deve ser em vão. Não podemos voltar ao status quo.

Como é que Putin cai? Com um milhão de russos na Praça Vermelha? Um golpe palaciano dos militares ou das forças de segurança? Uma rebelião dos oligarcas? Com isso tudo. Deve tornar-se evidente para todos que Putin é um obstáculo aos seus objectivos, sejam eles de poder, liberdade, ou prosperidade.

Os ditadores governam pelo medo e pela ameaça/promessa de que qualquer alternativa é pior. Esse cálculo pode ser alterado. Não dêem escapatórias a Putin. Dêem-nas antes à Rússia pós-Putin, aos russos que o abandonarem para o bem da nação e do mundo.

Até agora, os juízes russos, comandantes, agentes secretos, elites empresariais, etc. nunca tiveram de escolher entre a vida que queriam e Putin. A maioria dos russos nunca sentiu que tivesse qualquer escolha. Permitam-lhes escolher e eles não escolherão Putin.

Quando democratizar o saber era “de esquerda”

Como Pascual Gil Gutiérrez, um jovem professor espanhol que sigo no Twitter e com quem partilho muitos pontos de vista, recordo um tempo que não vivi, mas de que a História dá testemunho, em que democratas e progressistas defendiam e incentivavam a disseminação do conhecimento entre as classes populares.

Nesses sombrios anos 20 e 30 do século passado, quando o obscurantismo fascista incubava os seus ovos por quase toda a Europa, nenhum progressista consideraria que ensinar História ou Matemática era encher a mente dos alunos com conhecimentos inúteis.

Pelo contrário, a democracia não era apenas um princípio político ou económico; exprimia-se também na democratização do acesso à cultura e ao conhecimento até então reservado às elites. Construíam-se escolas para os filhos dos operários, organizavam-se bibliotecas populares e classes de alfabetização de adultos. Talvez porque desde muito cedo adquiriam competências no mundo laboral, entendiam melhor do que muitos pedagogos encartados dos nossos dias a importância do verdadeiro conhecimento.

Simulacro negocial

A negociação colectiva é obrigatória, por imperativo constitucional e legal, sempre que estão em causa, salários, carreiras, horários e condições de trabalho. Discutir os problemas e procurar, através de propostas e contra-propostas, encontrar soluções justas e equilibradas é uma obrigação de patrões e representantes de trabalhadores, a que nem o Estado enquanto empregador, se pode furtar.

No entanto, tudo isto sai furado se as ditas negociações não passam de um simulacro, com o Governo a chegar ao fim do processo negocial com a mesma exacta proposta que apresentou inicialmente: salário mínimo nacional como vencimento base na administração pública, aumentos de 0,9% em linha com a inflação e zero aproximações a outras reivindicações dos sindicatos.

A Frente Comum saiu, três dias após a greve nacional da última sexta-feira, de uma nova reunião negocial com o governo sem alterações naquelas que são as propostas do governo para os trabalhadores do sector público no quadro do chumbo do Orçamento para 2022 e de eleições antecipadas.

“Em muito boa verdade, se esta reunião não tivesse acontecido, não se tinha perdido grande coisa”, considerou nesta segunda-feira Sebastião Santana, coordenador da Frente Comum, à saída de novo encontro com a ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão.

“Não se tratou de uma proposta negocial, tratou-se de reafirmar a insuficiência que já vinha de trás: os 0,9% e o aumento do salário mínimo nacional na base da Administração Pública. Não houve avanço nenhum”, referiu o dirigente sindical.

Esta é uma atitude miserável de um partido que se reclama dos valores éticos republicanos, de um Governo sempre pronto a dar lições de democracia e que até fez questão de tornar a Cidadania uma disciplina autónoma no ensino básico. Pois na base da democracia está uma noção de respeito, de humildade até, dos governantes perante os governados, que não vemos neste Governo. Ninguém espera que algum governo ceda a todas as reivindicações sindicais. Sabemos bem que esse tipo de benesses se reserva a bancos falidos, a empresas do regime em busca de salvação ou a honrar os compromissos com empresários amigos. Para os trabalhadores os recursos financeiros disponíveis são sempre escassos, mas o que se espera numa negociação é que haja cedências de parte a parte. Algo perfeitamente possível, mesmo sem orçamento e com o Governo a prazo, até porque diversas matérias em discussão nem sequer têm impacto orçamental.

A participação cívica e política não se restringe ao voto nas urnas. Exprime-se também através da vida associativa, cultural e sindical. Desvalorizar greves, manifestações, petições, negociações colectivas e outras formas de participação no exercício democrático do poder contribui para afastar os cidadãos da vivência democrática e abrir espaço à demagogia, aos populismos e ao autoritarismo. Também por aqui o Governo insiste em ir por mau caminho.

Pensamento do dia

Votar, nas autárquicas ou em quaisquer outras eleições, é sempre uma forma de honrar todos os que, num passado ainda próximo, lutaram para que hoje possamos escolher, em liberdade e democracia, os nossos representantes.

Exercer o direito e cumprir o dever cívico de votar é também a melhor forma de demonstrar a gratidão e o respeito devidos a esses lutadores.

Fascismo nunca mais

Os 47 anos que já levamos de liberdade e democracia fazem da ditadura uma memória longínqua, para os mais velhos e, para os restantes, uma realidade que pertence irremediavelmente à História. No entanto, com o desvanecer da memória colectiva têm ganho terreno, nos últimos anos, as tentativas de branqueamento do passado opressor.

Invocando um rigor histórico que esquecem sempre que se chamam “comunista” à antiga URSS, os branqueadores do Estado Novo interpretam-no como um dos muitos “autoritarismos” que floresceram na Europa entre as duas guerras mundiais. A ditadura legalista e de alegada inspiração cristã imposta por Salazar seria muito distinta do “cesarismo pagão” de Mussolini. E os “safanões” da PIDE não teriam comparação com as torturas selváticas e os assassinatos em massa promovidos pelas polícias políticas nazis.

É verdade que não encontramos na figura de Salazar a oratória fulgurante nem a pose militarista de Hitler e Mussolini; a União Nacional não passou de uma pálida e artificial recriação dos movimentos de massas que alçaram outros ditadores ao poder. Mas os princípios comuns ao fascismo europeu, antidemocrático, nacionalista, militarista e corporativo estão bem presentes no movimento político que haveria de consolidar-se com a ascensão política de Salazar e a Constituição de 1933.

Determinar se o Estado Novo foi ou não fascista é questão que divide os próprios historiadores, de uma forma que se assemelha muito às discussões de há 50 ou 60 anos atrás sobre se teria existido feudalismo em Portugal. Num e noutro caso tudo depende, em última análise, da abrangência que dermos ao conceito. Analisando a questão num curto vídeo realizado para a RTP, o historiador Rui Tavares demonstra que o regime criado por Salazar não só se identifica claramente com o ideário fascista como procurou até ser aceite como tal pelos outros fascismos que, na sombria década de 30, proliferavam pela Europa.

A filiação do Estado Novo no movimento fascista tornou-se incómoda com o fim da II Guerra Mundial: a sobrevivência do regime dependerá da capacidade de se demarcar de uma ideologia derrotada. Uma mudança na forma para preservar o conteúdo, a substância do regime. Desapareceram as saudações à romana, deu-se um ar mais civilista à organização do Estado, rebaptizaram-se as colónias como províncias ultramarinas. Mas partidos políticos e sindicatos livres continuam proibidos o e as instituições repressivas – PIDE, Censura – mantêm-se inalteradas. A emigração em massa, a breve trecho as guerras coloniais – um termo também já sob a mira dos revisionistas da História – a falta de todo o tipo de liberdades sociais e políticas, tudo isto continua a caracterizar um regime que, com o franquismo espanhol, permanece como último sobrevivente do fascismo europeu.

Contudo, houve quem nunca tivesse grandes dúvidas sobre o carácter fascista do Estado Novo, mesmo na sua fase mais madura, mas não menos repressiva: foram todos os que lutaram contra o regime. Há apenas uma definição comum para todos os comunistas, socialistas, católicos, republicanos e liberais que, na acção política clandestina, no sindicalismo, na imprensa, no exílio ou nos tribunais lutaram para derrubar o regime que oprimia o povo português: eram, com convicção e orgulho, antifascistas.

Pelo que me parece que, mais importante do que reverenciar preciosismos historiográficos que trazem água no bico, designar por fascista o regime que nunca deixou de o ser é também uma forma de respeitar a coragem e os sacrifícios de todos os que lutaram contra ele, em defesa da liberdade e da democracia. Uma luta finalmente ganha com a Revolução de Abril, mas ao mesmo tempo uma vitória que não é definitiva. Quando os seus inimigos crescem em número e ousadia, defender, dos novos fascismos, a liberdade conquistada, continua a ser uma responsabilidade de todos os democratas.

Hotel “inclusivo”

Um jantar-comício do Chega no Sheraton Porto está a provocar uma onda de críticas e comentários negativos na página de Facebook desta unidade hoteleira de cinco estrelas, com impacto na classificação deste hotel.

O ataque é concertado, uma iniciativa da Frente Unitária Antifascista (FUA) que está a ser executada pela plataforma de Antifas do Porto, que apelou aos seus membros para encherem aquela página pública de comentários depreciativos sobre o hotel aceitar receber o jantar-comício do partido de André Ventura.

O DN pediu ao Sheraton um comentário, mas ainda não chegou. No entanto, o hotel reagiu assim no próprio Facebook: “Pautamo-nos por sermos um espaço inclusivo e não discriminatório (nem negativa nem positivamente) e não aceitamos que o nosso espaço e a nossa página sejam palco de comportamentos ofensivos e contrários a estes valores“.

Contactada pelo DN, a porta-voz da FUA explicou que “a iniciativa de publicamente chamar à atenção e criticar o hotel Sheraton Porto, por acolher o comício-jantar do Chega” é uma “estratégia vulgarmente conhecida pelas táticas de no-platform – não dar palco, nem espaço para falar, a racistas e fascistas – e de denúncia e boicote públicos a quem dá esse espaço de forma conivente ou deliberada”.

Perante o ganhar de terreno a que vamos assistindo por parte de organizações de extrema-direita que acolhem protofascistas, neonazis, racistas, xenófobos, a resposta que se tem demonstrado mais eficaz é mesmo esta: não dar palco, não conceder o “benefício da dúvida”, não contribuir de forma alguma para a normalização e a aceitação de projectos políticos que contestam os valores democráticos e os direitos humanos fundamentais.

Não se pode ser tolerante com quem defende e pratica a intolerância, nem inclusivo com quem deliberadamente pretende discriminar e excluir. É certo que os tempos vão maus, e até os hotéis de luxo enfrentam dificuldades. Do ponto de vista legal o Chega é por enquanto um partido como todos os outros, beneficiando até de uma estranha complacência do poder judicial perante as irregularidades e ilegalidades que comete impunemente desde a sua fundação.

Mas na sua acção política concreta, nas ideias que tem defendido, no tipo de gente que vai assumindo protagonismo dentro do partido, não restam dúvidas de que estamos perante um projecto político que pretende aglutinar toda a direita não democrática portuguesa, desde os saudosistas do salazarismo até grupos xenófobos, racistas e neonazis, alguns deles associados à criminalidade violenta.

Perante esta realidade, a separação de águas é essencial. A gerência do Sheraton tem o direito de acolher os eventos que entender, tal como os grandes empresários alemães não desdenhavam os bons negócios que os nazis lhes proporcionavam. Mas não invoquem uma inaceitável neutralidade perante os novos fascistas: estão a escolher um campo, colaborando activamente na aceitação social de um partido não democrático, sujeitando-se à condenação e à crítica de todos os que rejeitam a normalização do fascismo.

Sublinhe-se no entanto que retirar palco e publicidade às organizações fascistas, sendo necessário, não é suficiente. Mais importante é que, tanto à esquerda como no campo da direita democrática, se construam respostas aos problemas reais que alimentam o discurso demagógico do radicalismo: o desemprego, a exclusão social, os baixos salários, a criminalidade, a ineficácia da justiça e a impunidade dos poderosos.