Pessoas escravizadas

Investigadores e professores de história admitem que o ensino da disciplina em Portugal perpetua mitos sobre a herança colonial e está diretamente relacionado com os preconceitos dos docentes.

“Os manuais escolares estão muito reféns dos preconceitos dos professores”, afirmou à Lusa o presidente da Associação de Professores de História (APH), Miguel de Barros, salientando que os programas já incluem mudanças de designações e são mais inclusivos para outros povos, mas isso nem sempre chega às salas de aulas.

Nalguns manuais, “os preconceitos dos autores são óbvios”, referindo, por exemplo, que “os povos africanos eram muito variados até no aspeto” e, no passado recente, “era frequente colocar os escravos como produto”.

Para a socióloga Cristina Roldão, “os manuais são um reflexo de um problema”, que corresponde a “uma narrativa de uma identidade nacional em que a expansão colonial muitas vezes sob a designação eufemística Descobrimentos oculta muita violência colonial”.

O policiamento politicamente correcto da linguagem parece querer invadir as salas de aula. Na onda revisionista da História, em particular da história do colonialismo europeu, académicos e activistas empenham-se em denunciar preconceitos e enviesamentos na forma de interpretar e ensinar a História. E a associação que supostamente representa os professores da disciplina alinha na crítica:

A revisão dos programas curriculares, conhecidos como aprendizagens essenciais, pela APH, a pedido do anterior governo, “vieram fazer a diferença, mas a mentalidade [dos professores] não mudou”, salientou, por seu turno, Miguel de Barros.

“Nós até pedimos para se falar em escravos em vez de pessoas escravizadas”, recordou Miguel de Barros, salientando que as “palavras têm peso” no processo do ensino.

Na formação dos novos professores, esse trabalho de sensibilização tem sido feito para combater os preconceitos, mas não existem formações específicas para quem é mais velho.

Obrigadinho, pela parte que me toca! Sendo um dos “mais velhos”, já não irei provavelmente a tempo da recauchutagem que a APH preconiza. Acabarei a minha carreira como um professor obtuso e preconceituoso, insensível ao “peso das palavras”, a designar escravos como escravos e não como “pessoas escravizadas”. E a inclui-los, para desgosto do novo puritanismo linguístico, na lista de bens transaccionados. Pois este comércio existiu de facto e teve, para além da dimensão de imensa tragédia humana que ninguém pretende negar, um papel fundamental no desenvolvimento económico e na estrutura das sociedades coloniais.

Quando o pensamento e o discurso racista, supremacista e xenófobo ganham força nas sociedades ocidentais, há uma esquerda folclórica que parece pensar que combate o populismo reaccionário com jogos de palavras, em vez de enfrentar as suas verdadeiras causas. Uma aposta perdida, como se vai vendo pelo crescimento eleitoral da extrema-direita europeia, que as eleições de 9 de Junho se encarregarão, novamente, de confirmar. Andam, aliás, a tornar-se exímios na desmontagem do que chamam o discurso “woke”, caricaturando-o nos seus aspectos mais ridículos e evidenciando as suas contradições.

Escravos existiram, na verdade, em muitas épocas e lugares. E o desaparecimento da escravatura deu-se, quase sempre, não pelo triunfo de qualquer tipo de humanismo, mas porque outras formas de exploração do trabalho, seja a servidão de tipo feudal, seja o trabalho assalariado, se revelaram mais rentáveis e eficazes para os proprietários dos meios de produção.

Já existiam escravos em África quando os portugueses aí fizeram as suas primeiras incursões. E não foram os primeiros, nem os últimos a traficar seres humanos: holandeses, ingleses, franceses seguiram-lhes na pegada. E muitos séculos antes já existia, embora dela se fale muito pouco, uma outra rota de escravos africanos: a dos mercadores árabes que os levavam para a Arábia e outras paragens do Médio Oriente.

Lidando a História sobretudo com factos, que interpreta e interliga, atitudes moralistas na leitura do passado têm muito pouca utilidade. Os nossos antepassados negreiros e exploradores de homens e mulheres reduzidos à escravidão já morreram há muito; não estão já em condições de escutar os nossos sermões, muito menos de arrepiar caminho em relação a acções passadas. E enquanto nos fixamos nas atrocidades dos nossos avoengos, corremos o risco de ignorar ou esquecer as formas modernas de escravidão: o trabalho forçado, o tráfico de pessoas, a brutal exploração do trabalho nos campos e nas minas de países pobres, para alimentar a voragem consumista nos países desenvolvidos.

Mas claro que é sempre mais fácil verberar a escravidão do passado do que combater aquela que, de uma forma ou de outra, nos beneficia.

Voltarei ao assunto.

1 thoughts on “Pessoas escravizadas

  1. Mais um bom texto, A. Duarte!

    Vou pegar neste parágrafo…

    “E enquanto nos fixamos nas atrocidades dos nossos avoengos, corremos o risco de ignorar ou esquecer as formas modernas de escravidão: o trabalho forçado, o tráfico de pessoas, a brutal exploração do trabalho nos campos e nas minas de países pobres, para alimentar a voragem consumista nos países desenvolvidos.”

    e relacioná-lo à discussão sobre a imigração nestas eleições europeias. Não vi ainda debater-se a maior parte das razões que levam povos de países mais pobres e neocolonizados a emigrarem para os países mais ricos. Vejo debaterem-se políticas de integração. Mas sobre o que leva a essa emigração parece um esquecimento “normal”. A questão é: os povos desses países – despojados das suas riquezas naturais, com mão de obra barata, com juros de dívidas tão altos, com corrupções várias das suas elites governamentais e verdadeiros depósitos do lixo consumista- continuariam a emigrar se estes problemas fossem diferentes?

    Já agora, sobre a reparação às ex-colónias, não seria mais óbvio que essa reparação passasse também por um esforço de integração nos países de acolhimento?

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