Na avaliação do desempenho de Nuno Crato enquanto ministro da Educação situei-me, quase sempre, entre o moderada e o fortemente crítico. Não me coibi de apontar o dedo a uma política de exigência em relação a todos – alunos, professores, famílias – menos ao Governo, que a pretexto da crise desfalcou de recursos a escola pública, enquanto promovia o ensino privado a coberto da ideologia da “liberdade de escolha”. Denunciei a examocracia galopante, a pretensão de melhorar os resultados educativos, não com mais recursos e investimentos, mas aumentando a selectividade do sistema, com exames onde, como na cantiga do antigamente, “só passa quem souber”. Critiquei a fraude do “ensino vocacional”, um beco sem saída educativo para onde eram arrumados os alunos que não se enquadravam na pedagogia do rigor e da exigência proclamada pelo ministro.
Perante a acumulação de erros e preconceitos, os primeiros tempos do regresso do PS ao poder foram promissores: corrigiram-se os excessos da examocracia, recolocou-se o ensino privado com financiamento público no seu papel supletivo, e não alternativo, à escola pública, anunciou-se uma política educativa mais consensualizada e dialogante. No entanto, rapidamente as hostes eduquesas do PS se organizaram na tomada de assalto ao ministério: retornaram velhas pedagogias travestidas de inovação pedagógica; alguns dos bonzos dos mestrados de Boston, que pontificaram nas “ciências da educação” lusas nos anos 90, voltaram às luzes da ribalta; regressou o eduquês pedante, palavroso, burocrático e catedrático; desconstruiu-se o currículo sólido e objectivo em nome do primado das competências, das emoções e, acima de tudo, das ilusões. A maior de todas, a de que é possível aprender sem persistência e esforço, substituindo conhecimento sólido e estruturado por vacuidades incutidas ao sabor das modas educativas e do politicamente correcto de cada momento.
Em face desta onda de irracionalidade que varre o nosso sistema educativo, Nuno Crato ressurge, em entrevista recente, com ares de homem sensato, certamente mais conhecedor da psicologia da Educação e da realidade da sala de aula do que os pedagogos de gabinete que se dedicam a denegrir o trabalho abnegado – e tantas vezes não reconhecido – dos professores, que menorizam e de quem desconfiam sistematicamente. Deixo alguns excertos significativos.
…os professores já não são aqueles senhores que entravam na aula com ar sério e que após falarem durante 50 minutos seguidos saíam da aula. Já não são assim e existe uma interação com os alunos muito grande. Portanto, se é verdade que existem coisas em que são demasiado tradicionais, o sistema está muito moderno. Agora, está demasiado moderno numa coisa que vou dizer, que é esta pressão para as competências, pressão para as capacitações e pressão para os sócio-emotivos. É uma pressão que não está fundamentada, não estando fundamentada desorganiza o ensino.
Fala-se muito das competências do século XXI e esquece-se, muitas vezes, que isso tem de ser feito no estudo das matérias substantivas. Ou seja, é muito importante desenvolver a cooperação entre os alunos, mas com objetivos curriculares claros. É muito importante desenvolver a capacidade crítica, mas ao mesmo tempo que se estudam certas matérias e ao mesmo tempo que se está a progredir curricularmente. Esta ideia da modernidade, não é modernidade nenhuma, isto são teorias que têm mais de 100 anos. Se pegarmos cada uma delas e formos ver uma por uma, vamos verificar que são coisas que vêm de há séculos.
[Também] a ideia de que as competências se podem desenvolver no vácuo é uma ideia extraordinariamente perigosa. A ideia de que nós podemos desenvolver, por exemplo, o sentido crítico no vácuo, é uma ideia perigosa, porque o sentido crítico não tem qualquer hipótese de ser desenvolvido se não na base de um conhecimento específico sobre matérias específicas, se não estamos a desenvolver “fala-barato”, que são pessoas que são críticas sobre tudo. São críticas antes de conhecer o facto. Portanto, o sentido crítico é muito importante, mas o sentido crítico está ligado ao conhecimento dos factos e isso é algo que muitas das teorias modernas sobre a educação esquecem.
…quando alguns teóricos da pedagogia dizem “é preciso valorizar mais o raciocínio do que o conhecimento” estão a cometer, nesta frase, um erro pedagógico gravíssimo. Ao dizer-se “é preciso valorizar mais o raciocínio do que o conhecimento” está a pôr em oposição as duas coisas. Eu devo desenvolver o raciocínio desenvolvendo o conhecimento, essa é que é a questão essencial.
Por exemplo, na análise literária, como é que desenvolvo a capacidade de ler um texto? É lendo o texto, é conhecendo o texto, é conhecendo aquilo que está por trás do texto. Uma das coisas que se tem revelado muito nas últimas décadas é que a capacidade de compreensão do texto deriva num grau extremo do conhecimento da situação. Se estou a ler um romance do Eça de Queirós, consigo perceber o romance muito melhor se tiver um conhecimento do que é que era a época, o que é que aquela descrição das personagens quer dizer, o que é que era Lisboa na altura, o que é que era a província na altura, o que é que era o São Carlos, o que é que era o Grémio Literário, tudo aquilo. O conhecimento da época é fundamental para ter uma atividade raciocinada sobre aquilo que se está a ler.
Entrevista completa aqui.
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