Uma eleição em dois números

Muito bem Raquel Varela a denunciar, com a objectividade dos números, a hipocrisia das lideranças europeias. De um lado, a Europa das grandes negociatas feitas em nome dos supostos interesses e “valores” europeus. A Europa que se solidariza com os ucranianos para que continuem a ser carne para canhão na guerra contra a Rússia, mas se nega a reconhecer o genocídio do povo palestiniano. Que impõe sanções à Rússia invasora e vende armas a Israel para que prossiga o genocídio em Gaza. Em contraponto, uma casta de eurocratas principescamente paga para caucionar politicamente este estado de coisas, sabendo bem que o fim do “projecto europeu” seria também o fim das suas mordomias.

Os dois grandes números desta eleição: a guerra da Ucrânia já movimentou 1 bilião de euros entre venda de armas, venda de empréstimos e venda de contratos de reconstrução ( tudo isto se chama “ajuda”). Um deputado europeu ganha líquidos 8 mil euros, mais 4950 euros para despesas mensais; um subsídio de 350 euros por cada sessão no Parlamento e viagem em executiva; 24 viagens de ida ao país natal e um sem número de subsídio de viagens; reforma aos 63 anos de idade; reembolso de 2/3 das despesas médicas.

O que tem um assunto a ver com o outro? Tudo. Uma completa e despudorada profissionalização da política deixou os europeus sem uma alternativa socialista e radical capaz de defender um projecto internacionalista de liberdade e igualdade, um projecto para o mundo dos trabalhadores na Europa. A “alternativa” hoje é entre a direita neoliberal e a esquerda neoliberal (verde, rosa e laranja) e a extrema-direita.

O resultado: mais de metade dos Europeus não vota. Este impasse mórbido começa na diferença abissal entre o salário de quem trabalha e o salário nababesco de quem diz representar o povo europeu (nenhum partido, sublinho, nenhum disse qualquer coisa sobre este salário) e termina na política da UE de combater a paz na Ucrânia; e proteger o Estado sionista de extrema direita em Israel, que em pleno acto eleitoral “democrático” europeu chacinou 300 civis para salvar 4 reféns.

Do Facebook de Raquel Varela

Eleições europeias 2024 – algumas notas

(c) https://results.elections.europa.eu/ (captura de imagem pelas 23h. – hora portuguesa – de 9/06/2024)

Sem grandes surpresas, os resultados confirmam a tendência há muito notória de reforço da direita e da extrema direita, tanto em Portugal como em toda a Europa.

À esquerda, foi o descalabro. Cinco eurodeputados eleitos pelo BE, a CDU (dois cada um) e o PAN ficam reduzidos a dois deputados únicos de BE e CDU, sem que Livre e PAN consigam eleger. O individualismo vence, pelo menos provisoriamente, o espírito da luta colectiva de direitos para todos, que historicamente alimentou as forças sociais e políticas de esquerda. Enquanto a esquerda moderada troca a social-democracia pela gestão socializante do neoliberalismo globalista, as esquerdas mais autênticas e alternativas mostram-se cada vez mais perdidas e isoladas na defesa de micro-causas geracionais e identitárias. Enquanto isso a direita cresce, capitalizando com as crises, a frustração, o empobrecimento e o medo que ela própria vai alimentando entre os povos europeus.

O Partido Popular Europeu continua a ser o grande vencedor das Europeias, uma realidade que não muda há décadas. Somados às restantes direitas – conservadoras, liberais e fascistas – serão cerca de 400 dos 720 deputados eleitos: uma confortável maioria a assegurar a continuidade das políticas que, na última década, tornaram a Europa menos próspera e solidária e mais insegura e autoritária. Incapaz de defender os valores europeus que apregoa aos quatro ventos, vê-se cada vez mais subordinada à lógica do belicismo e aos interesses da alta finança e de outras potências.

Mas disso, por cá, pouco se fala. Reduzidos à nossa dimensão paroquial, os media promovem, dissecando-o até à náusea, o duelo Temido versus Bugalho, como se a eleição de mais ou menos um eurodeputado pelos partidos do centrão fosse o assunto mais relevante da noite eleitoral. A verdade é que os cabeças de lista do BE, CDU, Livre e PAN disputaram os seus lugares não com Bugalho, Temido ou Cotrim, que tinham a eleição ganha à partida, mas com o sétimo ou o oitavo candidato do PS e da AD. Alguém sabe quem são? Houve algum esforço, da parte da comunicação social, para os dar a conhecer?…

Mais à direita, a boa prestação mediática de Cotrim Figueiredo vem travar o crescimento do Chega, mas sem conseguir arrebatar-lhe o terceiro lugar, como algumas projecções iniciais vaticinavam. A verdade é que o partido protofascista é na essência um partido de um homem só, e qualquer eleição em que André Ventura surja num plano secundário será sempre um desafio, ainda mais quando como cabeça de lista surge um desconhecido que se revelou, claramente, um erro de casting. Um desaire relativo, mas que ainda assim poderá moderar os ímpetos de Ventura, pelo menos nos tempos mais próximos.

Uma última palavra para a abstenção. Ao contrário dos que embandeiram em arco com a ligeira descida da taxa de abstenção face às últimas legislativas (de 69,3% para 63,5%, enquanto nas recentes legislativas rondou os 40%), acho que um tão baixo nível de participação deveria levantar sérias questões. Desde logo sobre a utilidade ou relevância de um Parlamento sem reais poderes, mas também sobre o que representa hoje, para os cidadãos, o projecto europeu.

Quando instituíram a lei do referendo, tiveram os deputados o cuidado de ressalvar que resultados de referendos com taxa de participação inferiores a 50% não seriam vinculativos. Seguindo a mesma lógica, como havemos de nos sentir representados por deputados eleitos por menos de metade dos cidadãos? E que, tirando os cabeças de lista, são na sua grande maioria completos desconhecidos dos seus eleitores?…