No processo de municipalização da Educação, Rui Moreira sempre esteve um passo à frente da generalidade dos autarcas. Quando os seus colegas rejeitavam as propostas do Governo por acharem que lhes estavam a atribuir competências excessivas sem os meios necessários para as assumir, já Moreira se queixava de que era pouco: não pretendia gerir apenas escolas e funcionários, queria que os professores passassem também para a sua tutela.
Agora volta à carga, reivindicando também a municipalização do currículo: o ministério tutela o Português e a Matemática, a Câmara encarrega-se de tudo o resto. É o fim do currículo nacional consagrado na Lei de Bases do Sistema Educativo e o regresso, disfarçado de modernidade à século XXI, da velha escola do “ler, escrever e contar”. O restante orienta-se com uns projectos avulso, em parceria com empreendedores atentos às modas educativas e empresas amigas com olho para o negócio da Educação…
Cada vez se percebe menos a necessidade de impor aquilo a que o Governo chama “descentralização de competências” a escolas e autarquias claramente cépticas em relação ao novo modelo. As primeiras porque irão perder autonomia de gestão, passando a ficar dependentes da boa ou má vontade da autarquia para resolver coisas que até aqui eram solucionadas internamente. As segundas, porque fazem as contas à magreza do “envelope financeiro” e à carga de trabalhos que lhes poderá cair em cima e sentem que estão a fazer um mau negócio, ou até a assumir responsabilidades em matérias para as quais não se sentem preparadas ou vocacionadas.
Julgava eu, e muita gente, que a principal razão de transferir competências de gestão escolar para o poder local seria a maior facilidade de acesso, por parte de municípios e comunidades intermunicipais, a fundos europeus para a construção e reabilitação de edifícios escolares. Aliás, mesmo antes de se iniciar o processo da municipalização já era frequente as autarquias assumirem em nome do Estado central diversas intervenções, como foi o caso da remoção do amianto. Afinal, essa continua a ser uma área em que o ministério continua a ter responsabilidades. E daí este levantamento, agora anunciado pelo novo ministro, das intervenções necessárias. Para lançar, a breve trecho, um novo programa de obras escolares? Duvido muito. O mais certo é ser este o primeiro de muitos anúncios do que irão fazer, para que os mais distraídos julguem que se está de facto a fazer alguma coisa.
Ao fim de seis anos, vamos percebendo os truques do costismo e adoptando a postura de S. Tomé.
A Câmara do Porto e o seu presidente Rui Moreira têm liderado a contestação ao processo de municipalização da Educação. Mas nem sempre pelas melhores razões: ao contrário da maior parte das câmaras, que se mostram sobretudo preocupadas com a dimensão das novas competências que passarão a ter e a insuficiência do “envelope financeiro” que as acompanha, no Porto consideram que a transferência de competências agora consumada é insuficiente.
O executivo de Rui Moreira não quer ser um mero executor de políticas decididas centralmente; pretende assumir a gestão plena da educação no seu município. Na verdade, e embora nem sempre isso se assuma explicitamente, o que se contesta é que fique de fora, neste processo, aquilo que para alguns autarcas parece ser o mais aliciante: a contratação e gestão do pessoal docente.
Representantes de professores, directores e pais: ouvidos na elaboração da notícia, todos criticam a forma como a impropriamente chamada descentralização de competências na Educação está a ocorrer. Mas se uns esperam “sensibilidade dos autarcas”, outros pedem “afinações” ao modelo e outros ainda se mostram mais preocupados com o “envelope financeiro” que deve acompanhar a transferência de competências, nenhum destes pontos foca o essencial: o que está a ser feito não é transferir competências do poder central para as autarquias, mas sim passar para as câmaras competências até aqui atribuídas às direcções escolares.
O que acontecerá daqui para a frente – e já sucede nos concelhos que foram pioneiros neste processo – é que as escolas ficam reféns de boas vontades e disponibilidades da respectiva autarquia para assegurar tarefas de gestão corrente, que até aqui cabiam por completo no âmbito da autonomia das escolas.
As competências no âmbito da gestão escolar não serão “descentralizadas”: pelo contrário, haverá uma maior concentração, criando-se artificialmente um nível intermédio de gestão que apenas acrescentará, na mais benigna das hipóteses, mais burocracia e maior entropia nos processos de decisão e execução.
Este desastrado processo de “descentralização” que os governos PS vêm impondo, contra tudo e todos, é bem paradigmático do que tem sido o seu modelo de governação: enunciam bons princípios, dos quais é difícil discordar. E depois fazem exactamente o contrário do que os mais crédulos estariam à espera. A descentralização anunciada representa, na prática, o esvaziamento da autonomia das escolas e a centralização do poder nas autarquias.
Chamar descentralização a um processo de concentração, nas câmaras municipais, de competências que, no caso da Educação, estavam entregues às direcções das escolas e agrupamentos, é enganar o povo. Algo que os governos de António Costa têm feito com escasso pudor, sempre que anunciam alguma coisa antes de fazerem exactamente o seu contrário.
Lá para os lados onde trabalho o processo de municipalização já está concluído há algum tempo, e o resultado, não sendo desastroso, também não é brilhante: nas áreas em que havia já uma colaboração estreita entre escolas e autarquia – transportes escolares, instalações desportivas, rede de bibliotecas, apoio a projectos e actividades escolares – o bom trabalho teve continuidade. Mas a atribuição de novas competências à autarquia veio retirar flexibilidade à gestão corrente das escolas: procedimentos rotineiros que eram resolvidos internamente têm agora de passar por comunicações formais, e por vezes insistentes, aos serviços da autarquia. Substituir o toner de uma fotocopiadora ou reparar um equipamento que avaria, coisas que antes eram feitas de forma célere em escolas bem geridas, agora implicam burocracias e demoras que comprometem o bom funcionamento e a qualidade do serviço educativo.
Por outro lado, vícios burocráticos e contabilísticos que não existiam nas escolas, mas estão enraizados nas autarquias, começam a instalar-se na gestão escolar. Enquanto nas câmaras se segue a lógica do “ir fazendo” ao longo de todo o ano, nas escolas o trabalho realiza-se aula a aula e concentra-se nos períodos lectivos. Preciso da lâmpada do projector ou da ligação à internet agora, não durante a interrupção lectiva da Páscoa. E ou há recursos e condições para trabalhar, quando eles são necessários, ou tudo fica comprometido. Não voltámos ainda ao tempo em que se pedia aos meninos e meninas que trouxessem o papel higiénico de casa mas, à medida que a dita descentralização avança, a sensação que fica é a de que já faltou mais…
O Governo chama-lhe descentralização, mas o nome é enganador: a grande maioria das novas competências que se pretende atribuir aos municípios não pertencem ao ME, mas às direcções escolares. Na prática, o novo modelo é mais centralizador do que o actual, concentrando no executivo municipal competências de gestão que estão actualmente atribuídas aos directores das escolas e agrupamentos.
A municipalização diminui drasticamente a autonomia das escolas e também não deixa confortáveis a maioria dos autarcas, que passam a assumir despesas e responsabilidades na manutenção de todo o parque escolar e na gestão do pessoal não docente. Em contrapartida, a gestão pedagógica e do pessoal docente continuam a ser tuteladas pelo aparelho ministerial.
Perante o conhecido desconforto de muitos autarcas com os moldes desta descentralização, a Fenprof aproveita o congresso da Associação de Municípios para lançar o repto aos autarcas: juntem-se aos professores na exigência do seu adiamento! Uma posição que, a pouco mais de um mês e meio de eleições, faz todo o sentido, num processo em que faltou debate de ideias e transparência de procedimentos e intenções.
Em plena campanha eleitoral para as Câmaras e Juntas de Freguesia, Paulo Prudêncio reflecte sobre a realidade do poder autárquico, quando estamos também a poucos meses da conclusão do processo de ampla transferência de competências, no sector da Educação, para os municípios.
O poder local democrático tem sido justamente considerado uma das grandes conquistas da Revolução de Abril e do estado democrático consagrado na Constituição de 1976. Nem a monarquia constitucional, nem a Primeira República, muito menos o Estado Novo, confiaram o suficiente nas capacidade de decisão das populações locais para lhes concederem o direito a eleger localmente as administrações dos concelhos e freguesias. De norte a sul do país, os representantes eleitos operaram uma verdadeira revolução ao nível das infraestruturas e da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos: por iniciativa própria ou pressão directa sobre o poder central, promoveram a abertura de estradas, construção de redes de água e saneamento, planeamento urbano, habitação social, cuidados de saúde primários, apoio ao desporto, à cultura e às colectividades locais.
No entanto, à medida que as necessidades básicas foram sendo satisfeitas, as autarquias foram-se burocratizando e fechando em si mesmas e nos interesses de quem as governa ou que lá trabalha, mais do que nas necessidades das populações. Basta ver a quantidade de obras autárquicas, muitas delas apenas para encher o olho, programadas para o ano eleitoral. Quando não há estratégia de desenvolvimento a médio e longo prazo na maior parte das autarquias e só com eleições no horizonte é que os autarcas apresentam serviço, deveria equacionar-se seriamente a necessidade de, como na Grécia e Roma antigas, fazer eleições todos os anos.
Há um debate sobre a natureza e as finalidades do poder autárquico que o clima eleitoral não propicia mas que, cada vez mais, se vai tornando incontornável: as autarquias, sobretudo as câmaras municipais, tornaram-se estruturas pesadas, burocráticas, clientelares e pouco eficientes a cumprir as suas tarefas e a dar resposta às necessidades dos munícipes. Grande parte das receitas e dos recursos são gastos no funcionamento das próprias estruturas, restando pouco para servir efectivamente as populações. Nalgumas terras do interior a câmara tornou-se o maior empregador local, mas a produtividade e a capacidade técnica dos serviços são baixas, o que obriga a adjudicar externamente quase tudo o que vá além da manutenção corrente.
Ainda assim, o exercício do poder autárquico continua apetecível: as regras actuais dos financiamentos europeus para o desenvolvimento regional obrigam a que os projectos sejam, na ausência de regiões administrativas, apresentados por municípios ou comunidades intermunicipais. Num país incapaz de criar riqueza e reinvestir eficazmente a pouca que vai sendo gerada, ir ao pote europeu está no cerne de todos os programas políticos. E é isto que explica, acima de tudo, a política de “descentralização de competências” que o Governo promove com afinco e ainda maior entusiasmo do que os próprios autarcas.
Aqui chegados, regressamos ao ponto de partida: o que esperar de uma municipalização da Educação que, no essencial, passa muito mais por entregar às câmaras boa parte das competências que as direcções escolares detêm actualmente, do que por uma efectiva descentralização dos poderes concentrados no ministério? Paulo Prudêncio não aparenta ter grandes dúvidas: a conjugação do clima de parcialidade e amiguismos que prolifera na gestão autárquica com o modelo autocrático de gestão escolar imposto desde os tempos de Sócrates tem tudo para correr mal…
Se nada for alterado entretanto, daqui a seis meses todas as escolas e agrupamentos estarão sob a tutela das câmaras municipais. O quadro legal que assim determina já vigora desde o início de 2019, e um número significativo de autarquias já assumiu, entretanto, as novas responsabilidades que o Governo lhes quer entregar. Significa isto, na prática, que quase toda a administração escolar passa para a autarquia, com excepção da gestão do pessoal docente e da tutela pedagógica, das quais o ME não abdica.
Nas escolas, o tema vai passando despercebido. Entre o desinteresse, o fatalismo e o falso optimismo de achar que talvez a coisa não seja tão má como a pintam, os processos vão avançando e pelo andar da carruagem desconfio que a maioria dos professores só darão conta perante o facto consumado.
Remando contra a maré do conformismo, a Fenprof reafirma a sua posição clara e assertiva contra a municipalização da Educação.
Nesta iniciativa, a FENPROF entregou uma Carta Aberta que é, simultaneamente um apelo aos autarcas, para que estes procurem impedir o avanço do processo de municipalização antes que, em 31 de março, o mesmo, nos termos da lei, seja generalizado.
Em causa está, obviamente a autonomia das escolas e os níveis de responsabilidade na gestão do sistema educativo. Mário Nogueira foi claro em dizer que a FENPROF não pactua com a redução da já parca autonomia das escolas na gestão pedagógica do processo educativo e com a alienação de responsabilidades, aprofundando as assimetrias e retirando capacidade às escolas para fazerem a sua própria gestão dos problemas.
Há responsabilidades que cabem às escolas, hoje, e bem, que passarão para as autarquias, as quais por incapacidade, falta de disponibilidade financeira ou desconhecimento tenderão a transferir serviços para fora da esfera pública.
A FENPROF fez o apelo aos professores para que se envolvam nos debates eleitorais comprometendo os futuros autarcas com a necessidade reversão desta lógica destrutiva da escola pública.
Alguns exemplos que saem da esfera da competência das escolas, afastando a decisão dos seus interessados: ação social escolar, refeitórios e bares, pessoal não docente, rede de oferta educativa e condições de funcionamento dos estabelecimentos escolares.
Num quadro em que cerca de dois terços dos municípios recusou, para já entrar, impor-se-ia capacidade de análise da situação por parte do governo e de PS e PSD para não prosseguirem com a municipalização da educação.
Há um enorme embuste por trás de todo este processo que o Governo tenta vender como uma descentralização de competências para as autarquias e que abrange diversas áreas da administração pública, embora a maior incidência esteja, precisamente, no sector da Educação.
Esse embuste consiste nisto: as novas competências que são atribuídas às autarquias não são retiradas à administração central, mas às direcções das escolas e agrupamentos. O ME continuará a mandar nas escolas através dos directores, livrando-se em contrapartida das partes chatas, como a manutenção dos edifícios ou a contratação de pessoal não docente, que todos os anos dá barraca.
Quanto às escolas, a relativa autonomia que hoje existe para gerir o orçamento escolar irá desaparecer quando ele estiver integrado nas contas da autarquia e a simples substituição de uma lâmpada que avaria ou um vidro que se parte depender de autorização do senhor vereador. Nalguns lados, como também já pude constatar, o bom senso e a delegação de competências poderão minimizar os danos de um modelo de administração escolar que nem as próprias autarquias mostram vontade de assumir, e que só encontra justificação na facilidade que municípios e comunidades intermunicipais terão para aceder a fundos europeus destinados a financiar a reabilitação do parque escolar. É, uma vez mais, uma política de oportunismos e poupanças a impor-se num sector que deveria nortear-se por critérios de boa gestão pedagógica.
Com a petição que hoje dá entrada na AR, surge a oportunidade de a municipalização entrar na agenda parlamentar. Sem grandes apoios entre os autarcas, mas com adeptos convictos nas cúpulas dos dois maiores partidos, a municipalização parece ter-se tornado uma questão de regime. Haverá ainda esperança de reverter pelo menos os seus aspectos mais gravosos no sector da educação?
Os autarcas, a começar pelos socialistas, queixam-se de cortes orçamentais nas verbas a que têm direito, nomeadamente em parte das receitas do IVA e em vários fundos de apoio aos municípios. Ao mesmo tempo que vêem aumentar encargos e despesas. Até na Educação.
Em tempo de crise e de “envelopes financeiros” cada vez mais mitigados, talvez a desejada municipalização não se venha a revelar, para alguns autarcas sedentos de mais poder, o bom negócio que imaginavam…