Foi um caso mediático no Verão passado: a elevada procura de vagas no Agrupamento Filipa de Lencastre levou a que ficassem de fora muitos alunos residentes na zona, face ao elevado número de crianças vindas de outros lados. Grande parte terão conseguido vaga legitimamente, por um dos pais trabalhar na zona de influência da escola pretendida, mas terá havido também famílias a forjar moradas falsas ou a indicar como encarregado de educação um familiar ou amigo residente perto da escola para conseguirem lugar para os filhos.
Estas suspeitas de fraude motivaram então uma queixa de alguns lesados junto do Ministério Público, cujo resultado foi há dias conhecido:
O Ministério Público (MP) arquivou a queixa-crime apresentada por um grupo de pais das crianças residentes na área de influência do Agrupamento de Escolas Filipa de Lencastre, em Lisboa. Os encarregados da educação queixam-se de não conseguirem inscrever os filhos na instituição, pelas vagas estarem ocupadas por alunos que não residem naquela área. A notícia é avançada esta sexta-feira pelo jornal Expresso, que teve acesso ao despacho do MP.
No documento, o Ministério Público explica que a conduta dos pais que recorrem a moradas falsas não é punível nos termos legais, pois não tem como objectivo a “obtenção de benefícios ilegítimos à luz do direito constitucional”. O procurador responsável pelo processo explica ainda que a utilização de moradas falsas não tem a intenção de “prejudicar quem quer que seja”.
Desagrada-me, antes de mais, esta linha argumentativa seguida pelo MP, ao desculpabilizar a prestação de falsas declarações ao Estado, apenas porque não há a intenção de “prejudicar”. Pois significa o reconhecimento do “direito à mentira” do cidadão em relação ao Estado, que seria o contraponto do “princípio da desconfiança” com que o Estado age perante o cidadão. Pessoalmente, preferiria viver numa sociedade onde prevalecessem os princípios da boa fé, da confiança e do honrar a palavra dada. E também não me convence a presunção de que não há prejuízo para terceiros: ao alcançar determinado benefício que não pode ser dado a todos, estou a privar outra pessoa de o vir a obter. E, dessa forma, a prejudicá-la.
Contudo, o âmago da questão suscitada pelo movimento “Chega de Moradas Falsas” não reside aqui. O que está verdadeiramente em causa é o conflito entre dois direitos, havendo necessidade de decidir qual deles deve prevalecer:
- O direito legal de as crianças terem acesso prioritário à escola da sua área de residência, evitando-se que tenham, desde tenra idade, de fazer longas deslocações diárias?
- Ou o direito constitucional de, citando o MP, “acesso ao ensino e ao sucesso escolar em igualdade de oportunidades”?
Parece-me evidente, e assim o entendeu também o MP no despacho de arquivamento, que o princípio constitucional da igualdade de oportunidades prevalece sobre o normativo legal que favorece o encaminhamento dos alunos para as escolas situadas perto das suas residências ou dos locais de trabalho dos pais.
É também esta perspectiva que permite centrar a discussão no que verdadeiramente está em causa, que é a existência de um pequeno número de escolas públicas que são percepcionadas pelos pais como sendo de qualidade superior às restantes. Seja pelo investimento que foi feito nas suas instalações e condições pedagógicas, seja pelos resultados escolares obtidos pelos seus alunos, seja até pelas características do público escolar que maioritariamente as frequenta, a verdade é que há um conjunto de escolas que são incapazes de responder ao excesso de procura por parte dos alunos e suas famílias. E que têm, todos os anos, de deixar alunos de fora.
Seguindo este raciocínio, a decisão do MP deve ter uma leitura política, que é a condenação clara de uma política educativa de apartheid escolar, que não só vem criando um sistema de ensino público que favorece a desigualdade entre as escolas e os alunos que as frequentam, como tenta restringir a frequência das melhores aos residentes na respectiva área geográfica. Que pertencem, na maioria dos casos, à classe social alta ou média-alta.
Instrumentos desta política foram, entre outros, os investimentos selectivos da Parque Escolar, que fez reabilitações de luxo nalgumas escolas, deixando outras a cair de podres. Assim como a promoção descarada dos rankings de escolas, feitos com base nos resultados obtidos em exames, que atingiu o auge nos tempos de Nuno Crato.
Ora o que a decisão do MP evidencia, ao não dar andamento à queixa das moradas falsas, é que não há qualquer justificação legal ou constitucional para, depois de termos andado durante anos a diferenciar projectos educativos e a promover a competição entre escolas, penalizar as famílias que, querendo o melhor para os seus filhos, os tentam matricular na escola que acham mais adequada.
Criar escolas de bairro para as crianças das famílias mais ricas e instruídas, a par de escolas de segunda e terceira escolha para os que vivem em meios mais desafortunados é atentar contra o princípio da igualdade de oportunidades e segregar alunos, confinando-os ao meio em que vivem.
Dito isto, sobra o problema que desde o início esteve presente: como se corrigem os desequilíbrios de oferta e procura, quando eles existem, não por insuficiência de oferta, mas por todos quererem ir para o mesmo sítio? Obviamente que só poderá ser com mais investimento público nas escolas mais carenciadas, criando nelas as condições pedagógicas e o ambiente propício à aprendizagem e à obtenção de bons resultados escolares que hoje só encontramos nas escolas que são, por isso mesmo, as mais procuradas.
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