Boaventura Sousa Santos analisa, de forma perspicaz e por vezes contundente, o desaire eleitoral da esquerda à esquerda do PS. Reduzidos a menos de metade da sua anterior expressão eleitoral, a debandada de boa parte do seu eleitorado habitual para o PS permitiu a este partido uma vitória folgada nas eleições de 30 de Janeiro. Um feito em contra-ciclo com a tendência de dispersão do voto que se tem manifestado em Portugal e de um modo geral por toda a Europa: o PS é agora o único partido socialista europeu em condições de governar com maioria absoluta.
Escrevendo nas páginas de um jornal brasileiro, BSS dirige-se a leitores pouco familiarizados com a política portuguesa, focando-se no essencial e seguindo uma linha de raciocínio clara e objectiva. Uma leitura essencial a uma esquerda claramente desorientada e aparentemente incapaz de reflectir e de perceber os sinais dos tempos e as motivações e os resultados do voto popular. Na busca atarantada das razões do seu declínio, mias terão a ganhar, os partidos de esquerda, em olhar para si próprios do que persistir na procura de culpados para o que lhes aconteceu. O texto de BSS é um bom contributo para essa imprescindível reflexão.
Levará tempo até que estes partidos de esquerda tenham outra oportunidade e oxalá que então se lembrem dos desaires anteriores e aprendam a não os repetir. Serão certamente outros líderes e é de esperar que sejam também outras as políticas. A análise mais aprofundada dos resultados terá de vir depois. Por agora, podemo-nos ficar pelo mais evidente. É preciso distinguir entre o BE e o PCP. Os dois partidos têm um passado remoto comum, a fratura do movimento operário no início do século XX entre socialistas e comunistas. O PCP pertence à facção comunista e o BE, às divergências que ocorreram posteriormente no seio desta facção em resultado da evolução da Revolução Russa de 1917. O que une os dois partidos e é mais relevante para entender as causas profundas do seu desaire nestas eleições é que para ambos o PS é, no fundo, um partido de direita, uma direita que se disfarça de esquerda, mas que verdadeiramente não o é. Esquerda verdadeira são eles. Os seus dirigentes não o dizem, mas pensam-no. Não imaginam considerar a vitória do PS nestas eleições como uma vitória de esquerda.
O PCP tem razões históricas para esta atitude, pois os comunistas e a sua base privilegiada (o movimento operário) foram muitas vezes vítimas das políticas socialistas e, em parte por isso, esta atitude anti-socialista é largamente partilhada entre dirigentes, militantes e simpatizantes. No caso do BE a história é mais ambígua, tal partilha não existe nos mesmos termos e isso foi evidente desde a fundação do partido. Ambos os partidos têm uma tradição de pensamento vanguardista. Quando a teoria colapsa ante a realidade (por exemplo, colapso eleitoral) a culpa é da realidade, nunca da teoria. O patético discurso de Catarina Martins na noite das eleições foi prova cabal disso. E lembremos que, em 2011, o mesmo desprezo pela realidade levou o BE a chumbar o Plano de Estabilidade e Crescimento do governo socialista (José Sócrates), abrindo as portas para a direita mais anti-social que o país já conheceu. Desta vez, é mérito incondicional do PS de António Costa ter evitado a emergência de uma geringonça de direita. Mesmo assim, a porta para a extrema direita ficou mais que entreaberta.
No contexto português, a queda do PCP é estrutural porque está ligada ao declínio dos sindicatos, a base da implantação social do partido. O PCP é um dos únicos partidos comunistas europeus que não se renovou depois da queda do muro de Berlim e por isso ficou refém da evolução da sua base social organizada, os sindicatos. O declínio destes arrasta o declínio do partido. A não renovação do PCP foi, aliás, uma das razões da emergência e do êxito do BE. A tragédia do BE tem sido a de, em vez de acentuar a sua diferença, deixar que ela se vá diluindo. Nestas eleições, ninguém notou qualquer diferença relevante entre o discurso bloquista e o comunista. Mas a queda do BE explica-se pela acumulação de outros erros nos últimos anos. […]
O BE não entendeu os sinais do seu eleitorado porque o seu pensamento vanguardista não lhe permitiu descer até onde os cidadãos discutem, nos seus próprios termos, os seus medos e as suas esperanças. Não os escutou e se algum impacto teve foi o de os fazer suspeitar que o seu reforço eleitoral significaria mais instabilidade. A dirigente bloquista passou a primeira metade da campanha a justificar a decisão da rejeição do Orçamento e a segunda metade a parecer querer pedir desculpa por tê-lo feito. Que credibilidade pode ter tal dirigente? Acresce que se o BE tivesse aprovado o OE, este poderia ter sido melhorado na especialidade e em boa parte graças às propostas tecnicamente competentes do BE. Em vez disso acabou por objectivamente contribuir para eventualmente virmos a ter um OE menos bom do que aquele que teríamos se não tivesse havido eleições. Acresce que, ao auto-infligir-se esta derrota, deixou o PS solto para ser menos de esquerda do que que gostaríamos que fosse. O partido que consegue dar simultaneamente dois tiros nos dois pés só por milagre não cairia.