
O confinamento mostrou que certas actividades são essenciais para vivermos (empregos produtivos que implicam fabricação, transportação, entrega, reparação ou manutenção, bem como cuidadores, profissionais de saúde, etc) e outras foram vitais para nos fazerem sentir vivos (cultura, artes, humanidades, ensino, comunicação). A questão, para [David] Graeber, são as actividades intermédias, muitas delas de administração ou supervisão, que terão crescido exponencialmente nas últimas décadas, sem que se vislumbre uma razão lógica – administrativos, gerentes de fundos de investimentos, accionistas, consultores, especuladores, oficiais de justiça, conselheiros jurídicos, serviços financeiros, telemarketing, direito empresarial ou recursos humanos.
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O resultado é profissionais de outras actividades (no ensino, investigação, saúde) perderem tempo precioso com burocracia porque nos níveis intermédios existe quem tenha de justificar a sua ocupação. Porque é que isso acontece? Não é apenas oferta e procura. Há motivações económicas e políticas, da ordem da complexidade sistémica, mas também morais. A idealização do trabalho, enquanto valor em si mesmo, da produção e do consumo. A ideia de que a criação de empregos é sinónimo de prosperidade. Por outro lado, muitos empregos produtivos foram automatizados, mas em vez da redução do tempo de trabalho, o que se assistiu foi a um aumento dos empregos administrativos em sentido amplo. E há também mecanismos de controlo. Dividir para reinar. Criar postos de trabalho que se identifiquem com as visões e valores das classes dominantes, ao mesmo tempo que se promovem ressentimentos contra os que têm um trabalho de valor social inegável – não é a isso que se vislumbra quando existem manifestações de enfermeiros ou professores?
E aqui estamos. Quanto mais útil é o trabalho, mais mal pago é, parece ter sido o ensinamento do confinamento, segundo Graeber, com óbvias excepções, como os médicos. As políticas que tornaram a vida e o emprego mais difícil para tantas pessoas produziram em simultâneo uma série de actividades inconsequentes e com regalias para muitas outras. Antes de morrer, alertou para o facto de o mundo não ter aprendido nada com a crise de 2008, não sendo capaz de perceber quais os empregos sistemicamente mais importantes e os mais irrelevantes. E agora?
Pegando no conceito de empregos de merda criado por David Graeber, Vítor Belanciano tece interessantes e oportunas reflexões acerca da necessidade e do valor do trabalho nas sociedades do século XXI.
Na base, um aparente paradoxo. Vivemos num mundo onde os computadores, os robôs e as redes de comunicação deveriam progressivamente dispensar o trabalho humano, criando condições para a libertação da humanidade da obrigação de trabalhar, um pesado fardo que transportamos connosco desde, pelo menos, os alvores do Neolítico. No entanto, para a grande massa da população, a globalização económica e a revolução tecnológica da computação e da automação não estão a permitir, nem trabalhar menos, nem obter melhor remuneração ou maior realização pessoal do trabalho realizado.
Mesmo quem realiza trabalho produtivo, fabricando bens ou prestando serviços, vê-se muitas vezes constrangido a passar boa parte do seu tempo, não a produzir, mas a justificar aquilo que fez ou o que irá fazer. Quem é professor, por exemplo, sabe bem quando do seu tempo vai sendo tomado pela burocracia, pela produção de relatórios, planificações e todo o tipo de registos escritos que, na maioria dos casos, ninguém irá ler. Mas que são necessários a um número crescente de pessoas que justificam os seus salários pela intermediação que fazem entre os decisores no topo da hierarquia e, na base, os executores das tarefas e os prestadores dos serviços.
Subitamente, o confinamento imposto pela pandemia abriu-nos os olhos para uma realidade pouco visível: há profissões essenciais, sem as quais a economia e a vida em sociedade, tal como as conhecemos, se desmoronariam. O comércio de bens essenciais, a produção agrícola e industrial, o fornecimento de água, energia e telecomunicações, os serviços de saúde, os cuidados geriátricos, a educação – tudo isto se revelou essencial e não deixou de funcionar. Mas, com a óbvia excepção dos médicos, quantos trabalhadores destas áreas são efectivamente valorizados pelo trabalho que realizam?
Em contrapartida, temos sectores da administração pública e privada, dos bancos e serviços financeiros, das consultadorias e advocacias do regime, que pagam salários milionários aos seus funcionários de topo, apesar de os seus serviços pouco ou nenhum valor acrescentarem à economia ou à felicidade individual e ao bem-estar colectivo: em muitos casos, limitam-se a parasitar o Estado e a economia privada e a complicar a vida dos cidadãos.
Na base da pirâmide dos empregos de merda, temos uma série de profissões com diferentes graus de utilidade, mas em geral desprezadas e mal pagas, que subsistem enquanto os arquitectos do capitalismo pós-industrial não os conseguirem dispensar: o novo proletariado ao serviço das ubers e amazons nos transportes, nas logísticas e nas entregas porta-a-porta.
O dinamismo laboral da nova economia disfarça mal uma realidade que veio para ficar: um elevado desemprego estrutural, que tende a crescer à medida que aumenta a produtividade e a eficácia das empresas e organizações. Em vez da desejada reforma laboral, que passaria pela redistribuição e a valorização do trabalho – trabalho para todos, trabalhar menos, viver melhor – vemos ressurgir, mesmo em países desenvolvidos, formas de precariedade e exploração laboral dignas dos primórdios do capitalismo. E nem o discurso politicamente correcto da inclusão e da igualdade de direitos e oportunidades consegue escamotear o crescimento das desigualdades.
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