Mário Silva – O regresso da formação paga

No ECD e legislação complementar está consignado que é um direito do docente ter acesso a formação contínua gratuita; sendo esta um requisito obrigatório para progressão na carreira, significa que todos os docentes a têm de realizar. Fazendo uma prospeção pelos centros de formação, as ações propostas são escassas e/ou não correspondem à obrigatoriedade legal de serem feitas na área curricular em que trabalha o docente. O argumento é que não há financiamento para pagar a formadores especializados e tudo depende da formação dada gratuitamente por outros professores que tenham o reconhecimento de formadores.

Com esta situação, outras instituições de cariz empresarial viram um potencial mercado e começaram a disponibilizar formação especifica para cada grupo curricular mediante o pagamento de uma propina, que muitas vezes ultrapassa a centena de euros (acrescendo-se a despesa de deslocação)…!

Infelizmente, muitos docentes no receio de verem a sua progressão suspensa por mais outra barreira administrativa (além das quotas de mérito e das vagas para escalões), inscrevem-se nessas ações, assumindo mais uma despesa fixa.

Verificou-se que alterações legislativas levam a questionar para que servem os centros de formação: para proporcionar alguns lugares ‘dourados’ a alguns docentes como diretores? Meros escritórios administrativos cuja função principal é assinarem os certificados de conclusão da formação e gerir a bolsa de avaliadores de desempenho externos?

O que é garantido, é que mantendo esta insuficiência na oferta formativa, os docentes passam a incorporar na sua vida pessoal mais uma despesa que se manterá enquanto exercerem a profissão, mas sem qualquer compensação financeira decorrente desse trabalho que cubra mais esta despesa.

Mário Silva

A acrescentar à pertinente questão colocada pelo leitor Mário Silva, algumas breves achegas. É escandaloso, e deveria indignar-nos colectivamente, se tantos de nós não andassem já como que anestesiados com sucessivos e intermináveis abusos, tropelias e desrespeitos do ministério: sentado em cima do saco do dinheiro europeu, o ministro e os seus sequazes distribuem a contento as verbas destinada à formação de professores, canalizando-as para iniciativas enquadradas na pedagogia do regime – coisas flexíveis e inclusivas, avaliações maiatas, espiritualidades, transições digitais e por aí – e ignorando por completo tudo o que seja a formação, obrigatória por lei, no âmbito científico e pedagógico dos diversos grupos de recrutamento.

O que leva a questionar qual o papel que devem assumir os centros de formação contínua das associações de escolas, dotados da competência legal de identificar e dar resposta às necessidades formativas dos docentes das escolas associadas. Ora todos sabemos que não é nada disto que sucede: as prioridades formativas são decididas centralmente pelos pedagogos do ministério, e para tudo o que não seja considerado prioritário a verba disponível corresponde a um redondo zero.

Mais do que formações, o que se oferece aos professores são sobretudo formatações, a maioria de fraca qualidade, ao mesmo tempo que cresce de dia para dia um promissor mercado de acções de formação baseado na venda, aos professores, daquilo a que deveriam ter direito gratuitamente, e que o ME continua a ter a obrigação – que não cumpre – de proporcionar: formação contínua de qualidade, adequada às exigências da profissão e do seu estatuto.

Agências de comissariado político ao serviço da boa nova educativa e gabinetes de gestão burocrática das avaliações externas da famigerada ADD, os centros de formação das associações de escolas perderam há muito a sua autonomia, renunciando ao papel de referência que poderiam ter junto das comunidades educativas. Tornaram-se, em vez disso, correias de transmissão dos mitos e das modas educativas ditados pelo ministério, numa negação quotidiana de uma autonomia das escolas que, apesar de propalada, nunca foi tão reduzida.

O centralismo na Educação é uma tradição que vem de longe, mas costumava contentar-se em uniformizar e controlar as práticas. Arrogante, o execrável costismo educativo quer ir ainda mais longe: já não basta fazermos o mesmo, também devemos pensar todos da mesma forma!…

Lurdes Rodrigues quer directores a contratar

Sabe-se há muito que o modelo centralizado e burocrático da lista graduada não serve os alunos nem as escolas. Em geral, não serve, por ineficiência, para as colocações ou as substituições. Especificamente, causa verdadeiros prejuízos às escolas inseridas em territórios críticos que enfrentam graves problemas de fixação do corpo docente. Algumas chegam a ter de substituir 90% dos professores todos os anos, apesar de se saber, hoje, que um dos fatores mais importantes para melhorar os resultados dos alunos, nestas escolas, é a estabilidade do corpo docente, acompanhada de medidas de compensação e de apoio ao trabalho dos professores. A lista graduada nacional é cega em relação às especificidades e interesses de escolas e alunos.

Apesar dos danos estruturais que a sua passagem pelo ME causou ao sistema educativo, Maria de Lurdes Rodrigues continua a ter tempo de antena para proferir os seus dislates em assuntos de educação. Desta vez, vindo em socorro da proposta do Governo, que pretende retomar as contratações de escola em substituição do concurso nacional, “centralizado e burocrático”. Tendo em conta a forma como o faz, das duas uma: ou não sabe do que fala ou, sabendo-o bem, tenta tomar-nos a todos por idiotas.

A verdade é que o concurso local, mesmo sendo aplicado ao recrutamento para os quadros de escola ou agrupamento, não resolve o problema dos 90% de professores alegadamente substituídos todos os anos. Este é um problema específico de algumas escolas TEIP, onde a maioria dos professores que lá estão saem assim que podem porque, pura e simplesmente, não gostam de lá estar. E quando têm possibilidade de concorrer e obter colocação noutro lado, fazem-no sem hesitações. Oferecendo uma espécie de via-rápida de acesso aos quadros aos professores “com perfil”, o sistema pensado por João Costa poderá mesmo ter o efeito contrário ao pretendido: transformar as escolas mais problemáticas, mas dotadas de autonomia para recrutar, em verdadeiras placas giratórias de docentes que, ingressando nos seus quadros, rapidamente farão uso das diversas mobilidades disponíveis para de lá sair rapidamente.

Uma escola que tenha para oferecer ao seu corpo docente as piores condições não atrairá, muito menos conservará, os melhores professores. A liberdade de escolha, tão insensada nestes tempos neoliberais, tem destas coisas: pensamos nela como a possibilidade de escolhermos, quase nunca como a eventualidade de sermos (ou não) escolhidos pelos outros. Que, de uma forma ou de outra, também acabam por fazer as suas escolhas.

Pensamento do dia

Uma escola erigida na base da ditadura do projecto nunca será uma escola verdadeiramente universal, democrática e tolerante.

O pensamento único em matéria educativa, que alguns gurus da Educação nos continuam a propor, tem subjacente, apesar das vestes participativas e igualitárias, um fundo de totalitarismo, intolerância, por vezes mesmo irracionalidade, que se casa muito mal com as sociedades abertas, plurais e democráticas em que queremos continuar a viver.

Talvez por isso estes projectos de uma escola outra, que já se produzem em pequena escala há mais de cem anos, soçobram miseravelmente sempre que se tenta a sua generalização mais alargada.

É certamente mais fácil reinventar o colégio de elite do que a escola pública livre, democrática, universal e emancipadora.

O liceu dos milagres

Como conseguir que o adolescente se torne finalmente adulto e não se limite a envelhecer sem aprender nada pelo caminho? Todos os que convivemos com jovens interrogamo-nos todos os dias: como torná-lo autónomo em todos os sentidos e, ao mesmo tempo, solidário com quem partilha um tecto e uma mesa? Que consiga estar só e ao mesmo tempo apreciar a vida comunitária. Como todos estes dilemas que me atravessam a cabeça, fiquei impressionado com o Lycée Autogéré de Paris (LAP), que traduzido será algo como instituto auto-gerido de Paris, um centro educativo que em 2022 celebra o seu 40º aniversário de promoção da pedagogia alternativa na capital francesa.

O lema da referida escola é simples mas não simplista: “A autogestão como solução”. Já especifiquei que os adolescentes limpam a escola e se encarregam da cozinha. Também administram a escola em conjunto com uma pessoa contratada. E deve acrescentar-se que eles não fazem tudo isto completamente sozinhos: os professores também participam nas tarefas comunitárias.

A eterna e inquieta busca de uma nova escola, assente em modelos pedagógicos e organizacionais alternativos, será uma realidade quase tão antiga como a da própria escola. E as ideias que presidiram à criação deste liceu alternativo em Paris, há 40 anos atrás, ganham nos dias de hoje nova pertinência e actualidade: nunca terá estado tão em voga o ideal de uma escola promotora da autonomia e do sentido de responsabilidade, assente em valores como a cooperação, a partilha e a decisão democrática, e onde o igualitarismo se estende mesmo à relação entre alunos e professores.

Neste liceu em permanente autogestão, a aula de Química pode bem ser, por exemplo, a confecção de uma refeição vegetariana a servir na cantina, com os aventais de cozinha a substituir as batas de laboratório. Mesmo que não a aprendizagem da Química não seja muito produtiva neste contexto, ao menos, salienta o professor, aprendem a cozinhar. O foco está, aliás, em tornar as aulas interessantes e apelativas para os alunos, pois nesta escola autogerida não se marcam faltas: os estudantes vão às aulas se querem e quando querem, na perspectiva de que, dando mais liberdade aos jovens, também se reforça o seu sentido de responsabilidade.

A prova dos nove chega no fim, com a realização do BAC, o exame nacional necessário para o acesso ao ensino superior: com uma percentagem de aprovações em torno dos 40%, este liceu com apenas 240 alunos compara muito desfavoravelmente com as escolas regulares, onde as médias de aprovação são substancialmente superiores. Ainda assim, professores e alunos em auto-gestão não parecem preocupados…

[O objectivo principal é] desfrutar da escolaridade e aprender a viver em comunidade. No final de Junho deste ano, organizaram um fim-de-semana de reuniões e festividades para celebrar os 40 anos de educar e crescer “de outra maneira”. Naturalmente, o encontro festivo é também organizado de forma colaborativa. Os ex-alunos foram convidados a apresentar as suas propostas e a participar na organização do evento.

Portugal, um Rolls Royce na Educação?

Perante um título e uma manchete aparentemente tão elogiosos, tive natural curiosidade de ir ver o resto: o que teremos feito assim de tão bom, na Educação, para merecermos os elogios da representante da UNESCO?

A verdade é que, avançando na leitura, o entusiasmo esmorece: o automóvel de luxo só nos garante, afinal, a presença entre os primeiros 40 classificados no ranking dos sistemas educativos. E os elogios não vão propriamente para alunos e professores que, nas escolas, vão dando o seu melhor para que uns aprendam e outros ensinem. Quem parece estar de parabéns são os especialistas curriculares do ministério, que basicamente se têm dedicado a desconjuntar o currículo, transformando-o numa manta de retalhos incoerente, erigida em torno de vagas competências.

Tudo isto tem, afinal, o toque da nova ordem educativa que se tenta promover mundialmente e onde nada é o que parece: o pensamento crítico que se enuncia traduz-se, no encontro da Autonomia e Flexibilidade Curricular, em pensamento único, sem espaço para a crítica, a inquietação, o contraditório.

A avaliar pelo teor do discurso, a senhora Amapola Alama parece ter uma visão algo totalitária do currículo, que aparentemente não liga com a tão propalada, entre nós, autonomia das escolas. Seria estranho, se não conhecêssemos já a concepção centralista que o actual ME tem da dita autonomia: trata-se apenas de, em cada lado, se encontrar a melhor forma de cumprir as ordens, dadas na forma de desejos, dos responsáveis ministeriais.

Neste jogo de dissimulações e enganos, onde nada é o que parece, há ainda assim um momento revelador: quando a especialista da UNESCO exorta as direcções escolares a domesticarem os seus professores “desalinhados”… Eis, no seu esplendor, a escola das competências, sempre desconfiada dos professores incompetentes…

“Vocês são o ‘Rolls-Royce’ dos sistemas de educação. Estão entre os 40 países de topo no mundo da educação”, disse a especialista à plateia, constituída sobretudo por diretores de agrupamentos escolares e centros de formação, representantes dos organismos da tutela e outros profissionais e agentes do setor.

Amapola Alama defendeu que “o currículo é a força motriz de um sistema educativo e dá forma à visão que um país tem para a sua educação”, na medida em que, tanto ao nível técnico como político, estabelece “o quê, o como e o para quem” de todos os patamares do processo, abrangendo desde manuais escolares, a infraestruturas físicas e modelos de gestão.

Referindo que o Bureau Internacional da Educação está atualmente “a ajudar 48 países nas suas reformas políticas relativas à educação”, a especialista alerta, contudo, que um problema comum é “a incoerência entre o currículo implementado e aquele a que efetivamente se acede” – como acontece, por exemplo, “quando a instituição de ensino não alinha os seus professores com o que o currículo determina e, apesar de ter mudado para um modelo baseado em competências, os docentes continuam a só avaliar os alunos pelo que aprendem de cor”.

A escola do Francisco

“Vivi 6 anos a pensar como iria correr a entrada na escola do meu filho Francisco, que tem Síndroma de Down. Desde os 5 meses que trabalhou mais de 6 horas por dias em terapias e programas de desenvolvimento como o objetivo de expandir as suas capacidades, de potenciar o seu desenvolvimento neurológico. Um lutador, de apelido Resistência… Chegado o momento de entrada no primeiro ciclo, optámos pela Escola Pública – EB de Paredes no Agrupamento Damião de Goes em Alenquer. Mais uma vez com todos os sonhos e com a certeza de que seria o melhor lugar para encontrar amigos, aprender, crescer e ter todo o apoio para esta nova etapa. Embora tenha achado estranho que a turma do Francisco, com mais algumas crianças ao abrigo do DL 54/2018 tenha sido a única turma de 1º ano sem professora atribuída no início do ano, rapidamente as duvidas amenizaram com a colocação imediata de uma professora – Liliana Gregório, embora com contrato de substituição temporária, previsivelmente até ao final do 2º Período, uma vez que a primeira professora colocada tinha colocado baixa imediata. Rapidamente todos os pais se esqueceram que aquela professora poderia não ficar até ao fim do ano, tal foi o SONHO que alimentou em cada família”, continua a Célia que, à beira do terceiro período viu os seus sonhos para o Francisco e a sua confiança na escola pública serem abalados.

Na Liliana tinha encontrado “uma professora com uma abordagem prática, com uma elevada capacidade para fazer as necessárias adaptações curriculares para as crianças com essas necessidades. Acima de tudo uma professora que acredita nos alunos, que os faz sentir isso, que os leva a darem tudo o que têm no processo de aprendizagem, que os faz sentirem-se especiais e, acima de tudo, felizes”. A Célia e todos os pais tinham-se esquecido que a Liliana era uma professora a prazo.

Uma escola pública universal e inclusiva, capaz de proporcionar plena integração, igualdade de oportunidades, atenção à diferença e ensino de qualidade existe há bastantes anos em Portugal, pelo menos no papel. Na realidade, nem sempre é assim.

Um dos problemas mais complexos surge, não vale a pena negá-lo, com o absentismo docente, até certo ponto uma realidade inevitável decorrente do envelhecimento da classe com a progressiva e consequente degradação da saúde dos profissionais. Mas também é verdade que determinadas escolas e turmas têm mais propensão para, digamos assim, adoecer os professores.

Sendo certo que a saúde dos professores é um direito no mínimo tão importante como o direito à educação dos alunos, importa que as escolas disponham, não só de mecanismos céleres e eficazes não só para substituir os professores doentes, mas também para conservar os professores substitutos que realizam, tantas vezes em circunstâncias difíceis, um excelente trabalho. Evitando-se assim as situações altamente lesivas da aprendizagem e do bem-estar emocional dos alunos que decorrem de terem dois, três e às vezes mais professores diferentes ao longo do ano lectivo. No primeiro ciclo e na educação pré-escolar, a monodocência e a tenra idade das crianças tornam o problema ainda mais complicado.

A chave do problema está, como não é difícil depreender, na muito falada, mas pouco exercitada naquilo que verdadeiramente interessa, autonomia das escolas. A contratação de professores continua a ser uma competência do ministério, não tendo sido delegada nem nas escolas nem nas autarquias. Sendo relativamente consensual que assim se deve manter, a verdade é que o sistema precisa de mais flexibilidade para permitir às escolas acautelar o superior interesse dos alunos. Em especial daqueles que mais precisam destes cuidados.

A falácia da autonomia das escolas

Dizem-nos que a autonomia das escolas melhora a qualidade da educação e apontam-na como o caminho a seguir. Na verdade, é um cancro que destrói a relação pedagógica e faz dos professores e dos alunos reféns de interesses que não são os seus.

A autonomia que é fundamental, e que paulatinamente vem sendo retirada, é a que se centra na sala de aula e na relação pedagógica. É a liberdade de cada professor escolher as pedagogias, metodologias, estratégias e actividades mais adequadas às características dos alunos e à dinâmica das turmas. É assumir-se o professor como um profissional científica e pedagogicamente qualificado, autónomo, reflexivo, crítico e criativo, em vez de um qualquer amanuense a receber ordens do chefe. É não haver uma pedagogia do regime a ser imposta às escolas e aos professores, com retaliações para os que não a aceitem espontaneamente.

Autonomia centrada nas escolas ou, pior ainda, nas autarquias, é apenas uma forma de controlar o trabalho dos professores, roubando-lhes a liberdade pedagógica, formatando o acto educativo e submetendo-o a interesses que não são os dos alunos, das escolas ou dos professores.

Pior não fica?

A análise do discurso de João Costa, assente na retórica provinciana do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projecto”, da “flexibilidade pedagógica”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, expõe uma mistura de lemas gastos com teorias pedagógicas que foram abandonadas porque falharam, depois de terem lançado a confusão no sistema de ensino.

Quando se junta hoje a melodia das “aprendizagens essenciais” ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”, vemos o que a música de João Costa deu: um desconcerto nacional, particularmente para os que já chegam à Escola marcados pela sorte madrasta de terem nascido em meios desfavorecidos. Porque a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso. Mascara-o. Porque os experimentalismos assentes no abaixamento da fasquia não puxam pelos que ficam para trás. Afundam-nos. Porque o escrutínio sério das políticas educativas de João Costa, que só um pensamento crítico livre de contaminações ideológicas permite, demonstra-o.

Coerente com as críticas que foi fazendo, ao longo dos últimos seis anos, ao ministro de facto da Educação, Santana Castilho não cede, nem no dia da tomada de posse, às conveniências do “estado de graça” que alguns pretendem atribuir a João Costa, o anterior secretário de Estado que é agora ministro de pleno direito.

Em boa verdade, como se poderá esperar que João Costa altere um sistema educativo reconstruído em torno de ideologias e convicções falhadas, quando foi ele mesmo que esteve no centro do turbilhão de mudanças? O experimentalismo permanente e irresponsável, o crescimento galopante da burocracia escolar, o facilitismo das aprendizagens inclusivas, a desconstrução não apenas dos currículos mas também dos instrumentos necessários a uma avaliação séria dos resultados das reformas promovidas: este é o legado do costismo educativo, e nada na postura do novo ministro nos sugere que aprendeu com os erros, que se dispõe a melhorar ou a fazer diferente.

Pior do que está não fica, terá pensado António Costa quando decidiu promover o seu homónimo a ministro. Infelizmente, no mundo da Educação a experiência tem mostrado o contrário: mesmo quando parece que já se bateu no fundo, alguém se encarrega de demonstrar que é sempre possível descer ainda mais.

Marçal Grilo e a autonomia das escolas

[…] temos um problema muito grave que é a capacidade que as escolas têm para fazer coisas por si, uma vez que têm uma margem relativamente pequena. Temos um sistema muito centralizado, tudo sai do Ministério: saem as orientações, as metas, os calendários, os horários e mais uma série de coisas, que deviam estar ao nível dos agrupamentos e até mesmo ao nível das escolas. E porquê? Porque são as escolas que conhecem as comunidades onde estão inseridas, conhecem as famílias e são capazes de interagir com os encarregados de educação. Muitas destas matérias comportamentais podem ser detetadas nas escolas, outras podem ser detetadas na família. Por isso é que a interação entre a escola e a família é absolutamente essencial – e é essencial a todos os níveis, não é apenas ao nível do contacto com o diretor da escola, ou com do diretor da turma ou com os professores. […]

A extensa entrevista a Marçal Grilo, antigo ministro socialista da Educação, gira, algo repetitiva, em torno de duas ou três ideias que já pouco ou nada têm de original. Os danos causados pela pandemia, quer ao nível do comprometimento das aprendizagens, quer da saúde mental e da socialização de crianças e adolescentes. As vantagens do ensino presencial, que embora cada vez mais apoiado em tecnologias, demonstra ser a única forma de assegurar plenamente o direito à educação. E a sacramental autonomia das escolas.

Adepto de consensos e do discurso redondo, Marçal Grilo diz e escreve coisas de que é difícil discordar. Mas evita deliberadamente o contraditório e o confronto de ideias, o que se por um lado ajuda a elevar o homem ao grupo restrito dos bem falantes senadores do regime, por outro lado nada ajuda a esclarecer a dimensão dos problemas nem à busca de soluções concretas e funcionais. Registe-se então em breves linhas, relativamente à autonomia das escolas, muito mais invocada do que praticada no nosso país, o que a entrevista deixa por dizer.

Não basta mandar as escolas autonomizar-se. A autonomia não pode limitar-se a uma transferência de responsabilidades, sem que sejam alocados também os meios e os poderes necessários à tomada de decisões. Ora o que se continua a fazer é empurrar para as escolas a tomada de decisões difíceis, ilibando de responsabilidades políticas e administrativas os governantes e os dirigentes.

Apesar de se invocar a autonomia das escolas a torto e a direito, a verdade é que estas nunca foram tão controladas pelo ministério como são actualmente. Mais: se tradicionalmente as inspecções e outras acções de controle incidiam sobretudo sobre a boa gestão financeira das escolas e agrupamentos, deixando alguma margem de decisão à nível pedagógico, hoje em dia promove-se activamente uma pedagogia do regime, que as escolas são pressionadas a adoptar mesmo que isso se mostre prejudicial aos alunos e ao trabalho dos professores.

Para além do Big Brother ministerial, há outra grande ameaça à autonomia das escolas que é a municipalização da Educação. Embora esta seja geralmente apresentada como uma benigna delegação de competências do Estado central nas autarquias locais, a verdade é que quase todos os poderes que passaram ou estão prestes a passar para as câmaras municipais estavam antes atribuídos, não aos organismos centrais do ME, mas aos órgãos de direcção e gestão de escolas e agrupamentos. No novo modelo, os directores escolares ficam praticamente ao nível de um director de serviços camarários, dependendo da boa vontade da autarquia para assegurar a gestão corrente dos estabelecimentos de ensino.

Finalmente, a ampla autonomia das escolas que Marçal Grilo parece defender é pouco ou nada compatível com o actual modelo de gestão escolar. Confiar nas comunidades educativas para identificar os seus problemas e necessidades, desenvolvendo os planos e as acções adequados, implicaria uma gestão democrática e participada, que envolvesse todos os agentes e actores educativos na construção das melhores respostas. Ora o que temos em vigor é um modelo de gestão unipessoal que faz depender excessivamente da personalidade do director e das suas qualidades pessoais e profissionais o desenvolvimento de uma autonomia alargada.

Sobre tudo isto, de Marçal Grilo, nem uma palavra. O que também não surpreende, aliás. Basta recordar que apesar de terem sido tomadas, durante o seu mandato ministerial, medidas controversas como a introdução das aulas de 90 minutos ou a primeira aparição da cidadania como disciplina autónoma – então com a designação de Formação Cívica – a contestação das reformas recaiu quase inteiramente sobre a então secretária de Estado Ana Benavente. O ministro era apenas a eminência parda que pairava acima das minudências eduquesas – um termo que, curiosamente, ele próprio inventou.

Pensamento do dia

Desconfiem sempre que vos disserem “neste agrupamento temos muita autonomia”.

Quer dizer que vós, como professores, não ireis ter autonomia alguma.

Adaptado daqui.