Fico sem palavras. Ao longo de uma carreira de professor de História de mais de 30 anos, já terei mostrado o David de Miguel Ângelo a centenas, talvez milhares de alunos do 3.º ciclo. Nem teria como não o fazer. Trata-se de uma obra prima incontornável da arte renascentista, da autoria do mais importante escultor desta época. Trabalhasse eu num daqueles estados mais matarruanos da América de Cima e já teria sido provavelmente despedido inúmeras vezes, pois de todas as ocasiões em que leccionei o Renascimento nunca me ocorreu pedir autorização aos pais dos alunos para mostrar reproduções de estátuas ou pinturas.
Por mais voltas que se dê, não se encontra uma única perspectiva pela qual isto consiga ter algum sentido. Miúdos de 11 ou 12 anos, que é de quem estamos a falar, têm como companheiros telemóveis com internet, através dos quais podem aceder livremente – basta quererem – a todos os tipos de verdadeira pornografia. Além de conteúdos violentos, linguagem racista e sexista e todo o tipo de perversões que circulam à vara larga pela internet. Ficarão perturbados pela visão de um homem nu e da sua pilinha? Como é possível, em pleno século XXI, que ainda haja quem chame pornográfico a um nu clássico renascentista, sem se cobrir de vergonha e de ridículo?…
Por cá, estaremos ainda longe de chegar a este ponto, embora se saiba que a asneira tende a pegar de estaca e o moralismo hipócrita comece a adquirir, nesta modernidade rançosa do século XXI, categoria de valor universal. Mas por enquanto o nosso maior problema com a escultura ainda é outro: o indescritível mau-gosto de alguma estatuária que, paga com o dinheiro do contribuinte, prolifera por ruas e praças do país. Não é caso único, mas veja-se, a título de exemplo, a forma como em Vizela desbarataram 90 mil euros numa tentativa patética de homenagear António Guterres pelo papel que teve, enquanto primeiro-ministro, na elevação da vila a concelho. Tão feio que até dói…
Escondam esculturas ou vistam-nas, retoquem pinturas, censurem compositores, línguas, alterem narrativas e linguagem de livros … vivemos num “jardim” que temos de defender da selvajaria dos bárbaros como diz o outro.
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