MPD e canibalismo docente

Não é uma andorinha que faz a primavera; não são alguns casos fraudulentos na mobilidade por doença que podem pôr em causa todos os outros que estão realmente doentes. Foi com essa perigosa mentalidade e tendência em generalizar que se cometeram as maiores atrocidades e crimes ao longo da história da humanidade. É, por isso, com grande preocupação que assisto ao começo de uma campanha difamatória contra os professores em mobilidade por doença, doentes ou com familiares a necessitar de apoio.

Será, porventura, assim tão difícil estabelecer a ligação do envelhecimento da classe, a crescente sobrecarga de trabalho e o prolongamento dos anos de deslocações para escolas longínquas, com o aumento de problemas de saúde dos professores? Será que alguém se pergunta como é que um professor sexagenário aguenta fazer diariamente centenas de quilómetros nas estradas a acumular a todo o imenso trabalho profissional que lhe é exigido? Claro que não, pois é bem mais fácil falar mal dos outros, algo tão característico do nosso povo.

O texto, longo e sentido, que Carlos Santos publicou no seu Facebook e Paulo Guinote divulgou motiva-me a revisitar um tema sempre ingrato e delicado: a mobilidade por doença.

Antes de mais, é óbvio que o acentuado envelhecimento da classe docente propicia situações de doença crónica e incapacitante, que condicionam a mobilidade e a capacidade de trabalho de quem as sofre. Um regime especial e prioritário de mobilidade para docentes nestas situações é certamente mais justo e pertinente do que outros regimes de excepção que existiram no passado, como a preferência conjugal ou as requisições e os destacamentos para dar continuidade a turmas ou a projectos especiais. Não contesto nem duvido da existência de colocações ao abrigo da MPD que, a não existirem, condenariam milhares professores a uma existência ainda mais penosa ou, nalguns casos, ao abandono precoce da profissão: tenho conhecimento pessoal de algumas destas situações.

Porém, reconhecer um problema e a solução encontrada para o resolver não deve traduzir-se, como alguns parecem pretender, em fazer da MPD um tema-tabu. Algo de que não se pode falar, mesmo sabendo-se que o sistema instituído é permeável a abusos e tende a tornar-se insustentável financeiramente pelo número elevado de colocações, que cresce consideravelmente de ano para ano. Pelo contrário: justamente porque há pessoas que precisam verdadeiramente, é que se deve corrigir e melhorar os procedimentos estabelecidos, sob pena de, um dia, não haver para ninguém. Como sucedeu a tantos “direitos adquiridos” que foram sendo sucessivamente dados como insustentáveis.

O problema maior da MPD nem está nos alegados abusos, que serão sempre difíceis de controlar, mas no mecanismo de colocações encontrado, e que julgo ser único em toda a administração pública: o docente em mobilidade indica a escola ou agrupamento em que pretende ser colocado e o ME procede à colocação, mesmo que não exista aí qualquer serviço lectivo a atribuir ao professor. Mesmo que mais 40, 50 ou mais docentes, alguns até do mesmo grupo disciplinar, tenham indicado essa mesma escola de colocação. Isto é péssima gestão de recursos humanos, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, sabendo-se que noutra escola do mesmo concelho, às vezes até do mesmo bairro ou freguesia, poderá haver falta de professores. Mais: um regime tão facilitista acaba por atrair, não apenas os professores verdadeiramente doentes ou com situações de doença na sua família, que acredito serem a grande maioria, mas também, e cada vez mais, por potenciar aproveitamentos oportunistas.

Imagine-se um regime idêntico à MPD dos professores, por exemplo, entre os médicos de família: aqueles que tivessem doenças graves devidamente comprovadas poderiam deixar o seu posto de trabalho e os seus doentes, e ser transferidos para o centro de saúde que desejassem. E onde, tendo em conta o excesso de profissionais, ficariam a cumprir funções de apoio ou administrativas. Alguém consideraria isto aceitável? Claro que não, mas, dir-me-ão alguns, a responsabilidade de um médico e das questões urgentes de saúde não é comparável à realidade e ao trabalho nas escolas. Pois bem, é justamente desta forma que nós próprios menorizamos e desconsideramos a nossa profissão perante nós próprios e na imagem que dela projectamos para o exterior.

Quanto ao resto, inteiramente de acordo com o colega Carlos Santos na denúncia clara e assertiva que faz dos verdadeiros problemas da profissão, dos quais a MPD acaba por ser apenas consequência e pálido reflexo: a precariedade, traduzida em horários incompletos, colocações distantes e contratos temporários; as iniquidades nos concursos e nas avaliações, que fomentam injustiças e ultrapassagens; os compadrios e abusos de poder na gestão escolar, a burocracia escolar a crescer a ritmo galopante. Os professores continuam, como já se disse muitas vezes, a ser vítimas de uma organização que os adoece. Como não hão-de aumentar as baixas médicas, as mobilidades por doença, as aposentações antes do tempo?

Falta perceber que estes são problemas colectivos que nunca se resolverão sem unidade e luta, que é justamente o que não vemos na actual desunião. Contratados versus efectivos, saudáveis contra doentes e vice-versa, críticas dos do básico aos do secundário e vice-versa, e todos contra os sindicatos que os representam: este é o dividir para reinar que interessa à tutela e ao qual esta assiste da bancada. Até quando?…

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