Em plena campanha eleitoral para as Câmaras e Juntas de Freguesia, Paulo Prudêncio reflecte sobre a realidade do poder autárquico, quando estamos também a poucos meses da conclusão do processo de ampla transferência de competências, no sector da Educação, para os municípios.
O poder local democrático tem sido justamente considerado uma das grandes conquistas da Revolução de Abril e do estado democrático consagrado na Constituição de 1976. Nem a monarquia constitucional, nem a Primeira República, muito menos o Estado Novo, confiaram o suficiente nas capacidade de decisão das populações locais para lhes concederem o direito a eleger localmente as administrações dos concelhos e freguesias. De norte a sul do país, os representantes eleitos operaram uma verdadeira revolução ao nível das infraestruturas e da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos: por iniciativa própria ou pressão directa sobre o poder central, promoveram a abertura de estradas, construção de redes de água e saneamento, planeamento urbano, habitação social, cuidados de saúde primários, apoio ao desporto, à cultura e às colectividades locais.
No entanto, à medida que as necessidades básicas foram sendo satisfeitas, as autarquias foram-se burocratizando e fechando em si mesmas e nos interesses de quem as governa ou que lá trabalha, mais do que nas necessidades das populações. Basta ver a quantidade de obras autárquicas, muitas delas apenas para encher o olho, programadas para o ano eleitoral. Quando não há estratégia de desenvolvimento a médio e longo prazo na maior parte das autarquias e só com eleições no horizonte é que os autarcas apresentam serviço, deveria equacionar-se seriamente a necessidade de, como na Grécia e Roma antigas, fazer eleições todos os anos.
Há um debate sobre a natureza e as finalidades do poder autárquico que o clima eleitoral não propicia mas que, cada vez mais, se vai tornando incontornável: as autarquias, sobretudo as câmaras municipais, tornaram-se estruturas pesadas, burocráticas, clientelares e pouco eficientes a cumprir as suas tarefas e a dar resposta às necessidades dos munícipes. Grande parte das receitas e dos recursos são gastos no funcionamento das próprias estruturas, restando pouco para servir efectivamente as populações. Nalgumas terras do interior a câmara tornou-se o maior empregador local, mas a produtividade e a capacidade técnica dos serviços são baixas, o que obriga a adjudicar externamente quase tudo o que vá além da manutenção corrente.
Ainda assim, o exercício do poder autárquico continua apetecível: as regras actuais dos financiamentos europeus para o desenvolvimento regional obrigam a que os projectos sejam, na ausência de regiões administrativas, apresentados por municípios ou comunidades intermunicipais. Num país incapaz de criar riqueza e reinvestir eficazmente a pouca que vai sendo gerada, ir ao pote europeu está no cerne de todos os programas políticos. E é isto que explica, acima de tudo, a política de “descentralização de competências” que o Governo promove com afinco e ainda maior entusiasmo do que os próprios autarcas.
Aqui chegados, regressamos ao ponto de partida: o que esperar de uma municipalização da Educação que, no essencial, passa muito mais por entregar às câmaras boa parte das competências que as direcções escolares detêm actualmente, do que por uma efectiva descentralização dos poderes concentrados no ministério? Paulo Prudêncio não aparenta ter grandes dúvidas: a conjugação do clima de parcialidade e amiguismos que prolifera na gestão autárquica com o modelo autocrático de gestão escolar imposto desde os tempos de Sócrates tem tudo para correr mal…
O panorama mais que desolador aqui apresentado tem de ser rapidamente revertido e é absolutamente lamentável que nenhum partido, menos ainda os do arco da governação, esbocem a mínima tentativa de alterar o status quo. É crucial a criação imediata de uma espécie de provedoria do munícipe, independente dos interesses instalados e com poderes reais de intervenção e de decisão. Uma outra ferramente, esta legislativa, seria a criação de uma efectiva lei das incompatibilidades que, à semelhança de uma norma da UE, estabelecesse que nenhum responsável da administração a qualquer nível possa tomar decisões onde tenha interesse directo ou indirecto. Estas duas iniciativas de certeza contribuiriam para fazer baixar drasticamente os níveis de corrupção legal e ilegal que grassam nas autarquias, tornadas verdadeiros antros dos mais generalizados cambalachos deste país.
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